Representações da patologia feminina na psiquiatria portuguesa (1950-1960) II

NOTA: Adaptação de parte de uma comunicação, que fiz em Julho do ano passado, em Coimbra.

Género e patologia - 2

O sexo feminino é retratado, na generalidade dos artigos, como sendo mais predisposto do que o masculino, a sofrer perturbações do foro psicológico devido ao carácter mais emotivo da sua vida interior, à especificidade dos seus ciclos biológicos, da sua sexualidade e das suas funções reprodutivas. A menarca, a menstruação, a gravidez e a menopausa constituiriam momentos propícios ao aparecimento de perturbações, nomeadamente da psicose maníaco-depressiva hoje designada por disfunção bipolar. As mulheres estariam assim condicionadas pelas suas características biológicas. Adoptariam comportamentos tendencialmente mais masoquistas do que os homens, seriam mais atreitas às cefaleias de etiologia psíquica, à depressão, ao ciúme, ao ressentimento e aos comportamentos obsessivo compulsivos. Evidenciariam ainda maior susceptibilidade às psicoses sintomáticas, nomeadamente os sintomas confusionais ocorreriam sobretudo no sexo feminino.
Segundo Barahona Fernandes a mulher teria menor motivação para os valores objectivos, principalmente na idade madura. Durante grande parte da sua vida as tendências pessoais, subjectivas ocupariam a primazia sobre todas as outras em oposição ao que sucederia com os indivíduos do sexo masculino.
No que diz respeito à maior tendência para sofrer comportamentos do tipo obsessivo compulsivo Luís Navarro Soeiro afirmou, no artigo “A Psiconevrose Obsessiva,” que observou uma maior incidência de casos na mulher, referindo que estatisticamente se verifica uma predilecção pelo sexo feminino.
No artigo em análise descreveu vários casos clínicos referentes a mulheres e apenas um representativo do sexo masculino. Comentou, a propósito do comportamento sexual das doentes obsessivas:
“As mulheres são geralmente frias e devido a bizarrias nas suas relações simpáticas com o mundo que as cerca, sujeitas a todos os caprichos ou abstenções.” (Exemplificou com o caso de uma doente). Por seu turno os homens procurariam extravagâncias ou fantasias sexuais, feiticistas e sádicas.
Ilustra a componente masoquista do comportamento feminino com a análise do caso de uma paciente.
Fragoso Mendes, em “Reacções Neuróticas,” também referiu que as reacções neuróticas de tipo obsessivo se manifestariam mais frequentemente nas mulheres, por vezes logo na infância, puberdade ou adolescência de uma forma episódica ou constante (constituição psicasténica) em personalidades inseguras, anancásticas, meticulosas e escrupulosas com predisposição hereditária dominante.
No que concerne à articulação entre a feminilidade e a maior ocorrência de comportamentos depressivos, há uma série de estudos que estabelecem uma relação quase de causa e efeito entre as características específicas da mulher e a génese das depressões.
Diogo Furtado, no texto “Sistemática das Depressões e sua Terapêutica,” aludiu à relação entre menopausa e depressão quando trata da depressão transacional. A depressão involutiva seria uma afecção acentuadamente mais frequente sobretudo na mulher após o climatério, segundo este clínico apresentaria relações muito próximas com as psicoses do ciclo esquizofrénico. A prática clínica teria evidenciado a frequência com que se encontram manifestações do tipo paranóide, ideias delirantes, persecutórias, fenómenos alucinatórios e sentimentos de estranheza, entre outros.
Perspectiva similar é apresentada por Luís Navarro Soeiro em “Hereditariedade das Psicoses Endógenas”: “A predominância da psicose maníaco depressiva ou ciclotímica no sexo feminino é possivelmente devida a uma maior penetrância genética na mulher, sendo esta como é mais sujeita a variações periódicas do humor, com outros ritmos biológicos e metabólicos e, por isso também mais sensível às influências psíquicas exógenas.”
Neste sentido Martins Nunes num artigo intitulado “Sobre as Psicoses entre os Nativos de Moçambique” afirmou que se observariam diferenças entre os sexos, sendo as psicoses involucionais e as infecções vasculares cerebrais muito mais frequentes no sexo feminino, assim como as psicoses maníaco-depressivas, sublinhou que se limitou a constatar um facto sem sugerir hipóteses. Victor Fontes escreveu no seu artigo “Alguns Aspectos das Neuroses na Adolescência” que a anorexia mental seria mais frequente nas raparigas bem assim como as neuroses. O seu sistema motor seria mais afectado, sobretudo os membros inferiores mais atingidos com fictícia coordenação motora dificultando ou mesmo impossibilitando a marcha. A homossexualidade na adolescência seria, em seu entender, igualmente mais frequente entre as raparigas do que entre os rapazes. João dos Santos afirmou precisamente o contrário no texto “Neuroses da Infância.” Aí declarou que a adolescente, muito mais acentuadamente do que no rapaz, a sexualidade física, não seria bem aceite; e o desvio do desejo sexual sublimar-se-ia. Seria muito menos frequente a adolescente cair na prática sexual quer no sentido auto, como homossexual. O vício sexual na rapariga resultaria sobretudo do seu eventual abandono moral ou da sede de luxo e do prazer decorrentes da vida mundana. Continuou dizendo que tem a impressão que se a adolescente não recebesse em troca das práticas sexuais viciosas compensações materiais resistiria mais à neurose sexual do que o adolescente.
Francisco Alvim no texto “Psicanálise e Tratamento das Depressões,” defendeu que a rapariga adolescente passaria por uma série de problemas como a fobia das regras, a anorexia mental, que gradualmente redundaria em frigidez, esterilidade, reacções infantis ao meio e na menopausa depressões das mais graves o mesmo é dizer melancolia involutiva.
No “Curso de Psicologia Médica,” Barahona Fernandes explicou que a exaltação de uma mulher com os seus familiares durante a distimia pré-menstrual denunciaria um fundo de labilidade biológica e alteração do tónus vital, situação idêntica se verificaria nos estados de exaltação da menopausa, da involução senil, que dependeria sobretudo do fundo orgânico alterado. Todavia, relevou que a psicogénese é sempre condicionada por outros factores, personalidade/organicidade/sociedade. Neste artigo procedeu à análise de diferentes casos clínicos de mulheres, entre os quais referiu o de uma mulher, filha de pai leviano e mãe severa, que descobriu o amor aos 40 anos. Por não conseguir assumir tal sentimento sofria e sentia por isso profunda angústia.
As cefaleias de etiologia psicológica também seriam mais frequentes nas mulheres do que nos homens.
Diogo Furtado, “Cefaleias Psicogénias” declarou: “Em primeiro lugar a cefaleia psicogénia é particularmente mais frequente nas mulheres, muito mais que nos homens. Aproximadamente 65% dos casos da estatística americana eram mulheres.” Pedro Luzes no artigo “Enxaquecas,” incluído na mesma separata, na mesma linha afirmou: “As relações entre os factores endócrinos e as enxaquecas são demonstradas por várias observações clínicas. Assim as crises atingem sobretudo as mulheres. Começam muitas vezes na puberdade e são frequentemente síncronas com a menstruação, cessam em geral durante a gravidez ou menopausa.”
Quanto às teorias que explicariam estes factos de observação, segundo Pedro Luz seriam várias. Alguns autores apontariam em primeiro lugar para a disfunção dos ovários, considerando a enxaqueca como efeito de uma hipo ou hipersecção ovárica. Outros sustentariam que a função ovárica é secundária na génese da enxaqueca localizando-se a causa primeira na hipófise.
Para concluirmos esta secção destacamos dois artigos, que focam outra dimensão da etiologia das disfunções femininas atribuindo as causas das neuroses a uma reacção defensiva da mulher às ameaças do meio à sua integridade física e psíquica. Um é de Diogo Furtado, “Um Estranho Caso de Histeria” e o outro é da autoria de Amílcar Moura “Terapêutica Psicossomática Convergente.”
A relação estabelecida entre género e patologia torna-se ainda mais evidente nos estudos sobre as funções reprodutivas da mulher.

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