Março=> Poesia

Na vigésima manhã de Março a acuidade e o excesso do olfacto de um poeta:

O teu perfume, ou odor -
Toda a melodia desvanecida eu recordo, o meu corpo
Recorda, o meu corpo depois de morto recordará
Nos seus ossos, e quando depois de incinerados
Os próprios ossos forem pulverizados e dispersos
pelo ar
Como pequenos grãos de cinza, também eles recordarão
(Dançando à luz do sol, empurrados por grandes moléculas)
O teu odor sem nome.


Michael Fried, Odor in Linda Ferrer (ed), Eros, (Köln, Taschen, 1998), p. 72




Impressões

Ao ler o Digitalis vejo como é bem a imagem das minhas compulsões e da inclinação bipolar do meu temperamento.

A despropósito penso na minha relação negativa com os telefones e na causa dessa má ligação: a morte de três das pessoas mais importantes da minha vida foram-me comunicadas por via telefónica. Para além de toda uma série de outras notícias e conversas desagradáveis.

Há pequenos gestos que não têm qualquer significado para quem os faz, mas que se revestem de simbolismo para quem os acolhe, a beatitude de um certo sorriso, uma carícia, um sopro. O mesmo se aplica a certas frases. Assim se geram equívocos cómicos ou trágicos, conforme os casos e as personagens.

O Mito de Don Juan

Já escrevi aqui sobre os mitos de Narciso e de Orfeu. Transcrevo agora um texto de Béatrice Didier sobre a relação entre Don Juan e Sade:


A mulher existe muito ou muito pouco para que o donjuanismo seja possível no universo de Sade. Demasiadamente pouco, quando não passa de uma vítima, uma espécie de mulher-máquina para o prazer do homem, tal como Justine, tal como as inumeráveis presas dos monges. Mas tem demasiada independência quando ela é Julieta ou está em vias de o ser, como no caso das duas Eugénias, a de A Filosofia na Alcova e a de Crimes do Amor. O donjuanismo pressupõe um grau subtil de liberdade e alienação na mulher: é necessário que ela enfrente muitos tabus morais e religiosos (eis porque Don Juan é sobretudo um mito mediterrânico). (...)
"Não há nada que possa refrear a impetuosidade dos meus desejos; sinto em mim um coração capaz de amar a terra inteira." O herói sadiano, assim como Don Juan, são formas da universalidade do desejo. (...) Os grandes libertinos, em particular os de Cento e vinte dias, são universais. Julieta que, na obra de Sade, é afinal o personagem mais próximo de Don Juan - não podemos deixar de sublinhar esta proeminência de uma Don Juan - alia desde a mais tenra juventude, às suas conquistas masculinas, uma actividade de vigorosa tríbade.
O herói sadiano e Don Juan no cessam de desjar. As "mille e tre" de Don Juan, a repetição sem fim do universo sadiano correspondem a esta necessidade de um fluxo desejante. A descontinuidade permite, com efeito, uma continuidade. A infidelidade é uma forma de fidelidade. A sucessão substitui a duração. O desejo truinfa sobre o tempo e a finitude. A vítima sempre renovada, será uma só vítima eterna; e as "mille e tre", uma só mulher fora do tempo. É a esse nível que Sade e Don Juan se encontram - para além das duas t?cticas totalmente opostas. Seduzida por Don Juan ou violentada pelo herói sadiano, a presa terá sido, de qualquer forma, o pretexto e o meio de uma renovação infinita. As duas figuras míticas significam esta universalidade, esta eternidade do desejo.



Béatrice Didier, "Sade e Don Juan," in Álvaro Manuel Machado (ed), O Mito de Don Juan, (Lisboa, Arcádia, 1981), pp. 101-102 e 108-109

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