Março, mês da poesia, aqui no Digitalis.
Um poema de Bernardo Pinto de Almeida, um dos meus poetas preferidos:
Eros vagueando pelas ruas à noite
(num BMW série 3)
No carro atravessando
as avenidas - a cidade
pouco mais que deserta -
à noite entre semáforos
cada luz fugaz me interpela
que é de ti
cada praça é uma bolsa da memória
uma ferida
cada rua o caminho
até tua casa
os jardins dos sem abrigo
o meu estado
de nem saber quem sou.
Corta-me agora o frio
pela janela entreaberta contra o rosto
a lamina da feroz
melancolia.
Atravesso as vielas desavindas
seu comércio de carne ciciada
empobrecida à luz dos candeeiros
a funda cicatriz
do sexo público
e procuro entre os rostos
o teu rosto
e procuro nas chamas
das fogueiras
em que os pobres sem esperança
se confortam
nas ruas pela noite abandonadas
desertas como um mundo de outro mundo
a presença
de ti - a tua face.
Já é manhã quando regresso a casa
o que em mim habita agora
é monstruoso - a perda do amor torna-nos vis
não para fora de nós
mas ao contrário
até ao nó mais íntimo
do corpo
até que a boca fixa num rictus
entre espuma e palavras
entre querer balbuciar o que não sabe
contorcida medonha pela dor
solta o grito que lá por dentro a explode.
Aaaaaaaaahhhhrrrhh - ouve-se então
cortando ao meio
o silêncio do primeiro amanhecer
entre placards intermitentes
e o lixo abandonado e os carros cegos
e os primeiros pregões das vendedeiras
e os escapes do trânsito apressado
e os risos das crianças rindo em grupo
e toda essa manhã que se anuncia
e contra essa vitória da luz clara
a alma quer gritar que é noite ainda
que nada pode ferir esse narciso
caído sobre a pedra dos passeios
que nada deve jamais amanhecer
que nunca mais se quer que seja dia
porque no fundo de si mesmo o corpo grita
porque é o corpo que grita
na tua ausência.
Duas pequenas gotas de chuva
no meu rosto
és tu quem nele chora
agora
para sempre.
Bernardo Pinto de Almeida, Sem Título, (Porto, a Sétima Face Edições, 2002), pp.37-39
Todos os poemas do livro são de uma grande intensidade.
Um poema de Bernardo Pinto de Almeida, um dos meus poetas preferidos:
Eros vagueando pelas ruas à noite
(num BMW série 3)
No carro atravessando
as avenidas - a cidade
pouco mais que deserta -
à noite entre semáforos
cada luz fugaz me interpela
que é de ti
cada praça é uma bolsa da memória
uma ferida
cada rua o caminho
até tua casa
os jardins dos sem abrigo
o meu estado
de nem saber quem sou.
Corta-me agora o frio
pela janela entreaberta contra o rosto
a lamina da feroz
melancolia.
Atravesso as vielas desavindas
seu comércio de carne ciciada
empobrecida à luz dos candeeiros
a funda cicatriz
do sexo público
e procuro entre os rostos
o teu rosto
e procuro nas chamas
das fogueiras
em que os pobres sem esperança
se confortam
nas ruas pela noite abandonadas
desertas como um mundo de outro mundo
a presença
de ti - a tua face.
Já é manhã quando regresso a casa
o que em mim habita agora
é monstruoso - a perda do amor torna-nos vis
não para fora de nós
mas ao contrário
até ao nó mais íntimo
do corpo
até que a boca fixa num rictus
entre espuma e palavras
entre querer balbuciar o que não sabe
contorcida medonha pela dor
solta o grito que lá por dentro a explode.
Aaaaaaaaahhhhrrrhh - ouve-se então
cortando ao meio
o silêncio do primeiro amanhecer
entre placards intermitentes
e o lixo abandonado e os carros cegos
e os primeiros pregões das vendedeiras
e os escapes do trânsito apressado
e os risos das crianças rindo em grupo
e toda essa manhã que se anuncia
e contra essa vitória da luz clara
a alma quer gritar que é noite ainda
que nada pode ferir esse narciso
caído sobre a pedra dos passeios
que nada deve jamais amanhecer
que nunca mais se quer que seja dia
porque no fundo de si mesmo o corpo grita
porque é o corpo que grita
na tua ausência.
Duas pequenas gotas de chuva
no meu rosto
és tu quem nele chora
agora
para sempre.
Bernardo Pinto de Almeida, Sem Título, (Porto, a Sétima Face Edições, 2002), pp.37-39
Todos os poemas do livro são de uma grande intensidade.
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