Confidências e Desabafos de Savarin (92)
Os Segredos do Pão-de-ló
Um dos doces míticos da minha infância foi o pão-de-ló. Em primeiro lugar, porque a minha mãe o confeccionava regularmente - lembro-me da trabalheira para bater as gemas com o açúcar, até atingir o ponto certo. Em segundo lugar, porque nas poucas vezes que passei férias na Lousã, em casa dos meus avós maternos, depois de cozerem o pão, a broa, a bela da chanfana e o ainda melhor cabrito assado, no forno de lenha, era usual fazer uns quantos pães-de-ló, para aproveitar os derradeiros calores do forno. Para gáudio dos gulosos mais novos, juntamente, com os bolos grandes enchiam, daquela massa leve e dourada umas formas mais pequenas destinadas às crianças, eu, minha irmã e primos. ( Já agora ... fabricavam umas merendinhas ou merendeiras, pequenos pães de milho, a cuja massa ainda crua se adicionava cebola e bocadinhos de toucinho, de comer e chorar por mais). Por outro lado, mesmo em S.Miguel, no Natal e na Páscoa, o meu pai era presenteado pelos fornecedores com os em boa hora gigantescos pães-de-ló de Margaride.
Mas, o principal motivo que me levou a escrever sobre o bolo em apreço, foi o seu divertido nome. A designação atribuída a este bolo tão fofo e saboroso constitui um verdadeiro enigma.
Em tempos remotos, teria sido, primeiramente, designado por castela. A denominação viria do ponto dos ovos ao serem batidos. Devem ficar em castelo, ou seja, firmes. Ou, então, o nome do bolo derivaria de castela, antiga moeda castelhana, que circulou em Portugal no tempo de Dom João I (1357-1433).
Há quem julgue que a denominação pão-de-ló se inspirou num tecido e foi dada por uma mulher. Tratando-se de um bolo caseiro, desenvolveu-se na cozinha doméstica, logo feminina, tal como os lavores. Ló é escumilha, um tecido, uma espécie de gaze muito fina e delicada. Outros associam a designação ao vocabulário náutico. Neste caso, ló corresponderia ao lado do navio voltado para o vento, o Don Vivo, poderá esclarecer se esta história do vento é, na verdade, assim. Todavia,em ambos os casos, o nome realçaria a leveza do bolo.
No livro Festas e Comeres do Povo Português II, lançado em 1999 pela Editora Verbo, Maria de Lourdes Modesto, Afonso Praça e Nuno Calvet, mencionam uma terceira versão, embora não a defendam, referindo que, segundo uma antiga crença, na localidade de Margaride, teria vivido uma doceira cujo marido teria o apelido de Ló. O bolo teria sido baptizado assim, em sua homenagem. No entanto, tal hipótese carece de documentação que a fundamente.
O certo é que o Pão-de-ló de Margaride é muito famoso e ainda mais apreciado. A sua célebre fabricante, Leonor Rosa da Silva,foi agraciada com o título de "Doceira da Casa Real" por ter presenteado a princesa D. Amélia na ocasião do nascimento de seu filho, o príncipe da Beira, com um exemplar delicioso deste bolo. Os grandes fornos (de 1730) ainda existem.
Até António Nobre, na sua obra Só alude ao conhecido bolo:
Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!
Pão-de-ló de Margaride!
Aguinha fresca de Moirama!
Vinho verde a escorrer da vide!
António Nobre, Só "Lusitânia no bairro latino", 3
Apesar de considerarmos o pão-de-ló, uma invenção nacional/lusitana há outros países que disputam sua autoria. Os espanhóis reivindicam a criação do bolo, chamam-no de bizcochón, na Galiza. Curiosamente, os italianos designam o bolo por pan di Spagna.
Por seu turno, os franceses também têm uma receita parecida, denominada génoise. Teria sido criada em Génova, na Itália, e posteriormente adaptada e difundida pelos gauleses. A principal diferença desse pão-de-ló tem a ver com o facto de os ovos e o açúcar serem aquecidos a 40ºC e batidos fora do lume. Nas receitas portuguesas são utilizados à temperatura ambiente.
Todavia, nenhum país venera tanto o pão-de-ló, nem coleciona tantas versões do mesmo como Portugal. São famosos os de Alfeizerão, Alpiarça, Bombarral, Coimbra, Freitas, Ovar, Margaride e Vizela. As diferenças dizem respeito às quantidades dos ingredientes, maneiras de preparação e tempos de cozedura.
Intitulam-se de acordo com as localides de origem. Alfeizerão, por exemplo, é uma povoação perto de Alcobaça. O seu pão-de-ló, tal como o de Rio Maior, distingue-se porque em vez de ser alto e seco, é baixo e húmido.
O pão-de-ló aportou também ao Brasil a bordo das caravelas lusitanas. No livro Vida e Morte do Bandeirante, (São Paulo, Gráfica da Revista dos Tribunais, 1929), o escritor paulista José de Alcântara Machado D'Oliveira(1875-1941) citou um inventário de meados do século XVII no qual são arroladas duas bacias de cobre para fazer o bolo. Frei Caneca, um dos líderes da Insurreição Pernambucana de 1817, que pretendia proclamar a Independência do Brasil, adorava pão-de-ló.
O estudioso brasileiro Luís da Câmara Cascudo(1898-1986), no Dicionário do Folclore Brasileiro, Dicionário do Folclore Brasileiro
Rio de Janeiro,Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, 1954. 660 p., dedica uma passagem ao pão-de-ló destacando a sua importância na tradição culinária brasileira. Por ser um doce caro, feito com muitas gemas, e render pouco, era reservado aos momentos especiais. Apareceria na mesa das famílias abastadas, juizes de Direito e vigários paroquiais. Acompanharia o café e o chá servido às visitas.
Ao pequeno almoço, os idosos com dificuldades para mastigar comeriam pão-de-ló em substituição do pão. Seria costume oferecer este bolo aos doentes e às famílias enlutadas, no segundo caso embrulhado em um cetim preto.
No Brasil, durante a colonização, dava-se pão-de-ló aos condenados à forca, antes da execução, acompanhado com um copo de vinho. "Algumas famílias ofereciam gratuitamente esse bolo de enforcado", refere Câmara Cascudo.
Mas, também o consideravam um refinado presente de aniversário. No interior do Brasil, ainda hoje, os bolos de casamento, são de pão-de-ló montado em camadas, com recheio de doce de leite e creme de ovos, e cobertura de glacê. Aliás, em Portugal, com excepção dos Açores - onde são de frutas cristalizadas e secas - os bolos festivos tradicionais são à base de pão-de-ló.
O doce, também, deu origem a algumas expressões populares. Diz-se que uma pessoa quando é recebida com muitas deferências é "tratada a pão-de-ló". No Nordeste, se alguém come muito, arrisca-se a ouvir a seguinte advertência do anfitrião avarento: "Antes quero sustentar jumento a pão-de-ló do que você com farinha", semelhante ao nosso "Mais vale sustentar um burro a pão-de-ló...". "Pão-de-ló-de-festa" tem o mesmo significado que "peru-de-festa", ou seja aquele tipo de pessoa que é uma presença constante em acontecimentos sociais.
No século XVI, o pão-de-ló foi levado para o Japão pelos missionários católicos ao serviço de Portugal. Os japoneses batizaram-no de Kasutera (Castela). Aprenderam também a fabricar os confeitos, pequenos doces cobertos de açúcar, que designaram por kompeito. Mais Kompeito.
Os Segredos do Pão-de-ló
Um dos doces míticos da minha infância foi o pão-de-ló. Em primeiro lugar, porque a minha mãe o confeccionava regularmente - lembro-me da trabalheira para bater as gemas com o açúcar, até atingir o ponto certo. Em segundo lugar, porque nas poucas vezes que passei férias na Lousã, em casa dos meus avós maternos, depois de cozerem o pão, a broa, a bela da chanfana e o ainda melhor cabrito assado, no forno de lenha, era usual fazer uns quantos pães-de-ló, para aproveitar os derradeiros calores do forno. Para gáudio dos gulosos mais novos, juntamente, com os bolos grandes enchiam, daquela massa leve e dourada umas formas mais pequenas destinadas às crianças, eu, minha irmã e primos. ( Já agora ... fabricavam umas merendinhas ou merendeiras, pequenos pães de milho, a cuja massa ainda crua se adicionava cebola e bocadinhos de toucinho, de comer e chorar por mais). Por outro lado, mesmo em S.Miguel, no Natal e na Páscoa, o meu pai era presenteado pelos fornecedores com os em boa hora gigantescos pães-de-ló de Margaride.
Mas, o principal motivo que me levou a escrever sobre o bolo em apreço, foi o seu divertido nome. A designação atribuída a este bolo tão fofo e saboroso constitui um verdadeiro enigma.
Em tempos remotos, teria sido, primeiramente, designado por castela. A denominação viria do ponto dos ovos ao serem batidos. Devem ficar em castelo, ou seja, firmes. Ou, então, o nome do bolo derivaria de castela, antiga moeda castelhana, que circulou em Portugal no tempo de Dom João I (1357-1433).
Há quem julgue que a denominação pão-de-ló se inspirou num tecido e foi dada por uma mulher. Tratando-se de um bolo caseiro, desenvolveu-se na cozinha doméstica, logo feminina, tal como os lavores. Ló é escumilha, um tecido, uma espécie de gaze muito fina e delicada. Outros associam a designação ao vocabulário náutico. Neste caso, ló corresponderia ao lado do navio voltado para o vento, o Don Vivo, poderá esclarecer se esta história do vento é, na verdade, assim. Todavia,em ambos os casos, o nome realçaria a leveza do bolo.
No livro Festas e Comeres do Povo Português II, lançado em 1999 pela Editora Verbo, Maria de Lourdes Modesto, Afonso Praça e Nuno Calvet, mencionam uma terceira versão, embora não a defendam, referindo que, segundo uma antiga crença, na localidade de Margaride, teria vivido uma doceira cujo marido teria o apelido de Ló. O bolo teria sido baptizado assim, em sua homenagem. No entanto, tal hipótese carece de documentação que a fundamente.
O certo é que o Pão-de-ló de Margaride é muito famoso e ainda mais apreciado. A sua célebre fabricante, Leonor Rosa da Silva,foi agraciada com o título de "Doceira da Casa Real" por ter presenteado a princesa D. Amélia na ocasião do nascimento de seu filho, o príncipe da Beira, com um exemplar delicioso deste bolo. Os grandes fornos (de 1730) ainda existem.
Até António Nobre, na sua obra Só alude ao conhecido bolo:
Pregões. Laranjas! Ricas cavaquinhas!
Pão-de-ló de Margaride!
Aguinha fresca de Moirama!
Vinho verde a escorrer da vide!
António Nobre, Só "Lusitânia no bairro latino", 3
Apesar de considerarmos o pão-de-ló, uma invenção nacional/lusitana há outros países que disputam sua autoria. Os espanhóis reivindicam a criação do bolo, chamam-no de bizcochón, na Galiza. Curiosamente, os italianos designam o bolo por pan di Spagna.
Por seu turno, os franceses também têm uma receita parecida, denominada génoise. Teria sido criada em Génova, na Itália, e posteriormente adaptada e difundida pelos gauleses. A principal diferença desse pão-de-ló tem a ver com o facto de os ovos e o açúcar serem aquecidos a 40ºC e batidos fora do lume. Nas receitas portuguesas são utilizados à temperatura ambiente.
Todavia, nenhum país venera tanto o pão-de-ló, nem coleciona tantas versões do mesmo como Portugal. São famosos os de Alfeizerão, Alpiarça, Bombarral, Coimbra, Freitas, Ovar, Margaride e Vizela. As diferenças dizem respeito às quantidades dos ingredientes, maneiras de preparação e tempos de cozedura.
Intitulam-se de acordo com as localides de origem. Alfeizerão, por exemplo, é uma povoação perto de Alcobaça. O seu pão-de-ló, tal como o de Rio Maior, distingue-se porque em vez de ser alto e seco, é baixo e húmido.
O pão-de-ló aportou também ao Brasil a bordo das caravelas lusitanas. No livro Vida e Morte do Bandeirante, (São Paulo, Gráfica da Revista dos Tribunais, 1929), o escritor paulista José de Alcântara Machado D'Oliveira(1875-1941) citou um inventário de meados do século XVII no qual são arroladas duas bacias de cobre para fazer o bolo. Frei Caneca, um dos líderes da Insurreição Pernambucana de 1817, que pretendia proclamar a Independência do Brasil, adorava pão-de-ló.
O estudioso brasileiro Luís da Câmara Cascudo(1898-1986), no Dicionário do Folclore Brasileiro, Dicionário do Folclore Brasileiro
Rio de Janeiro,Ministério da Educação e Cultura, Instituto Nacional do Livro, 1954. 660 p., dedica uma passagem ao pão-de-ló destacando a sua importância na tradição culinária brasileira. Por ser um doce caro, feito com muitas gemas, e render pouco, era reservado aos momentos especiais. Apareceria na mesa das famílias abastadas, juizes de Direito e vigários paroquiais. Acompanharia o café e o chá servido às visitas.
Ao pequeno almoço, os idosos com dificuldades para mastigar comeriam pão-de-ló em substituição do pão. Seria costume oferecer este bolo aos doentes e às famílias enlutadas, no segundo caso embrulhado em um cetim preto.
No Brasil, durante a colonização, dava-se pão-de-ló aos condenados à forca, antes da execução, acompanhado com um copo de vinho. "Algumas famílias ofereciam gratuitamente esse bolo de enforcado", refere Câmara Cascudo.
Mas, também o consideravam um refinado presente de aniversário. No interior do Brasil, ainda hoje, os bolos de casamento, são de pão-de-ló montado em camadas, com recheio de doce de leite e creme de ovos, e cobertura de glacê. Aliás, em Portugal, com excepção dos Açores - onde são de frutas cristalizadas e secas - os bolos festivos tradicionais são à base de pão-de-ló.
O doce, também, deu origem a algumas expressões populares. Diz-se que uma pessoa quando é recebida com muitas deferências é "tratada a pão-de-ló". No Nordeste, se alguém come muito, arrisca-se a ouvir a seguinte advertência do anfitrião avarento: "Antes quero sustentar jumento a pão-de-ló do que você com farinha", semelhante ao nosso "Mais vale sustentar um burro a pão-de-ló...". "Pão-de-ló-de-festa" tem o mesmo significado que "peru-de-festa", ou seja aquele tipo de pessoa que é uma presença constante em acontecimentos sociais.
No século XVI, o pão-de-ló foi levado para o Japão pelos missionários católicos ao serviço de Portugal. Os japoneses batizaram-no de Kasutera (Castela). Aprenderam também a fabricar os confeitos, pequenos doces cobertos de açúcar, que designaram por kompeito. Mais Kompeito.
Comentários
No decorrer de pesquisas acerca do pão de ló de margaride, uma vez que me preparo para reabrir a célebre Casa margaridense, situada na Travessa de cedofeita no porto, afamada pela venda do mesmo pão de ló, embora pelas mãos de uma parte da dissidente da familia originária de Margaride. A minha questão é saber se podemos usar este seu texto no site da loja, é óbvio com a referência ao autor.
Obrigado
João carvalho
joaoquercus@gmail.com