Confidências e Desabafos de Savarin (82.2)

Caro JP

As Coisas que a Gente Aprende nestes Intercâmbios ou Aqui Vai Mais Caneja com Direito a Confraria e Tudo:


CANEJA D'INFUNDICE, UM PETISCO CONTRA O PRECONCEITO

21/05/2001 | Comer. beber e dançar
O tubarão ou o seu parente cação são bicharocos que, à primeira vista, repugnam aos olhos, quanto mais ao paladar.

Não nos apressemos, porém, nem deixemos lugar para o preconceito onde só deve haver curiosidade e largueza de espírito, como deve ser o caso quando de comida se trata.

Em Portugal, no interior alentejano, faz-se uma sopa com cação fresco, farinha de trigo, azeite, vinagre, alho, um ramo de coentros ou de poejos e fatias de pão de trigo que deixará rendido o paladar mais exigente, sobretudo se identificado com os segredos da dieta mediterrânica.

Percebe-se que, numa região do interior, onde já foi difícil, por insuficiências de vias de comunicação, fazer chegar os peixes mais delicados, o talento culinário se tenha apropriado de um monstrinho marinho mais resistente à decomposição fazendo dele um petisco apaladado e muito apreciado.

Estranho é que numa conhecida praia do litoral português, muito rica em peixes e mariscos nobres, a Ericeira " localizada a uns 50 quilómetros de Lisboa ", um parente do cação, a caneja, que dele se distingue por ter as barbatanas peitorais mais pequenas e apresentar, quer no dorso quer nos lados, pintas escuras, seja altamente considerado pelos pescadores locais.

Com a agravante da caneja não ser consumida fresca, mas apenas depois de ser submetida a uma cura que dura uma semana, fazendo-a adquirir um aroma muito intenso e característico, a que os locais chamam "infundice", palavra que os dicionários registam como significando "barrela de urina, em que se põe de molho a roupa muito suja, para depois se lavar melhor".

De forma menos chocante, digamos que a caneja d'infundice liberta, antes da cozedura, um intenso cheiro a amoníaco.

Depois de apanhada, a caneja é amanhada e embrulha-se numa saca de serapilheira. Ao fim de três dias, tempera-se com um pouco de sal e volta-se a embrulhar durante mais quatro ou cinco dias, ao fim dos quais se junta mais um pouco de sal. Completada a semana de cura, que deve ser feita em local escuro ou mesmo enterrada, a caneja liberta o tal cheiro a amoníaco.

Depois, em água abundante, coze-se a caneja, que nesta operação perde o cheiro a "infundice". Serve-se com batatas cozidas, tudo temperado com azeite e vinagre. O resultado é um prato simples, em que o peixe tem um aspecto acinzentado e um cheiro levemente amoniacal, de sabor muito intenso e textura macia.

Curioso é que o azeite, que é dourado, fica com aspecto esbranquiçado e leitoso ao contacto com o peixe.

As gentes da Ericeira " onde este prato é considerado uma raridade e, por isso, só é preparado sob encomenda e em muito poucos lugares com porta aberta, daí que se deva reservar algum tempo para essa tarefa " sugerem que a caneja d'infundice seja acompanhada por um vinho tinto novo, muito encorpado e taninoso.

Cada garfada exige a companhia de um gole de tinto. Garantem que, mesmo um vinho de pouca qualidade, ganhará asas a acompanhar a caneja d'infundice. Esta será a opinião mais controversa de tudo o que se encontra ligado a este tão peculiar petisco. Um vinho de pouca qualidade nunca deve ter lugar à mesa de pessoas decentes.

Parece horrível a caneja d'infundice? Parece. Mas e a caça "faisandée"? E os queijos a que os bolores azuis dão odores e sabores saponáceos, como os apreciadíssimos "Roquefort" e "Stilton"? E também não há quem garanta, ante o delícadíssimo paladar e a untuosidade celestial do caviar de esturjão, que, tratando-se de ovas, preferem as de pescada? Como escreveu, com génio, o poeta português Fernando Pessoa, quando provou a Coca-Cola, "a princípio estranha-se, depois entranha-se".

Daí que não se deva desistir à primeira. A caneja d'infundice, mais do que um petisco com o seu quê de inusitado, pode ser encarada como uma lição contra o preconceito. Ou um hino à diferença. Aí está!

Há na Ericeira uma confraria da caneja d"infundice, que assumiu o encargo de preservar e divulgar este prato estranho e raro.


Texto: David Lopes Ramos

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