História e Epistemologia da Física - A Perspectiva de Gerald Holton (3)

E as outras ciências?

A componente temática é mais óbvia quando a ciência é nova.

[Veja-se o caso da Psicologia, por exemplo].


A lamentável separação entre ciência, humanidades e outras áreas da cultura poderá ser atenuada ou até mesmo eliminada mediante o recurso à análise temática.
Retornando a Newton, e à V regra, esta poderia ser justificadamente publicada se lhe fosse acrescentada a seguinte afirmação: E tais hipóteses, designadas hipóteses temáticas, também têm lugar na filosofia natural.

2. Johannes Kepler...

2.1. As importantes publicações de Kepler, precederam no tempo, as de Galileu, Descartes e Newton, e são em alguns aspectos mais reveladoras. No entanto, ainda hoje, Kepler é estranhamente negligenciado e incompreendido.

Parte das causas desta incompreensão reside na aparente confusão de elementos incongruentes, na miscelânia de física e metafísica, astronomia e astrologia, geometria e teologia, animismo e alquimia, matemática e numerologia, que impregna e caracteriza a sua obra. Obra, muito diferente dos ascéticos tratados de Galileu ou Newton, escritos segundo os parâmetros modernos.

Kepler, na sua comovente e embaraçosa candura, não esconde o seu tortuoso trajecto, relatando-o pormenorizadamente, não omite as suas falhas, estabelece analogias, descreve eventos pessoais, etc. A sua força resulta precisamente desta justaposição. Devemos reparar que quando a sua física falha, a sua metafísica manifesta-se; quando um modelo mecânico se desmembra como instrumento da explanação, um modelo matemático toma o seu lugar... Ele procura unificar o quadro clássico do mundo,que estava dividido em duas regiões, a celeste e a terrena, em direcção ao conceito de força física universal, mas quando este problema não é produtivo para a análise física ele retorna ao artíficio/ estratagema de uma imagem unificada pelo sol, no centro do mundo, governando-o e a um princípio unificador que penetra as harmonias matemáticas. No fim, ele acabou por falhar no seu projecto inicial de providenciar uma explicação mecânica para os movimentos observaveis dos planetas, mas foi bem sucedido na edificação de uma ponte entre a velha concepção do mundo como um cosmos imutável, para uma nova visão do mundo como o plano de fundo onde se jogam a dinâmica e as leis matemáticas. E neste processo ele rodou como que por acidente, as chaves de que Newton necessitou para o eventual estabelecimento da nova cosmovisão.



2.2. Rumo à Máquina Celestial


Um instinto apurado para a física (ver o tratamento do movimento de projécteis na terra em rotação, equivalente à formulação da sobreposição do princípio das velocidades e a crítica ao perpetuum mobile) e um compromisso com a metafísica neo-platónica, constituiram os dois guias fundamentais de Kepler, que serão examinados separadamente e nos seue pontos de fusão.


Ele foi o primeiro a olhar para uma lei física universal baseada na mecânica terrestre para explicar e abarcar todo o universo nos seus detalhes quantitativos. O próprio Copérnico, mantivera a distinção entre os fenómenos terrestres e os fenómenos celestes. Esta distinção crucial desaparece em Kepler desde o início das suas pesquisas.
Toda a estrutura do universo está sujeita a uma única lei de construção, e que posteriormente irá ser revelada a Newton como uma força.
O encontro com Tycho Brahe, despertou-o para a metodologia observacional, mas ele está convicto de que embora necessária, tal meio de aproximação é insuficiente, recorrendo à matematização. Ele procurou leis físicas baseadas em fenómenos obervados e que descrevessem todo o universo e de uma maneira quantitativa pormenorizada.

Nova concepção de universo: Metáfora do relógio:

"Estou muito preocupado com a investigação das causas físicas. O meu propósito é mostrar que a máquina celeste deve ser assemelhada não a um organismo divino mas antes a um relógio... pelo menos na medida em que todos os múltiplos movimentos são causados por uma simples força magnética, tal como no caso do relógio todos os movimentos são provocados por um simples peso. Além disto, mostro como é que este conceito físico pode ser apresentado através do cálculo e da geometria." Kepler, Astronomia Nova, onde se inscrevem a 1ª e a 2ª leis do movimento dos planetas.
Demonstrar que a máquina celeste se assemelha a um relógio comandada por uma única força, era um objectivo verdadeiramente profético.
Kepler imaginava forças magnéticas originárias do sol a conduzir os planetas ao longo das suas órbitas ( inspirado nos trabalhos de William Gilbert).
O nascimento da concepção de unidade é talvez mais surpreendente do que em Newton, pela simples razão de que Kepler não teve antecessor.

2.3. A Física da Máquina Celeste:

As forças entre os corpos não são causadas pelas suas posições relativas ou geométricas mas sim por interacções mecânicas entre os objectos.
Críticas a Aristóteles e premonição da gravitação universal ( feliz intuição).
A gravitação consiste no mútuo esforço conjunto dos corpos entre os corpos relacionados em direcção à união ou conexão.
Se a terra não fosse redonda, um corpo pesado não seria conduzido ...

O calcanhar de Aquiles da física celestial de Kepler, funda-se no seu 1º axioma e na sua concepção aristotélica da lei da inércia, onde a inércia é identificada com uma tendência para o repouso- causa privativa motus.
O axioma priva-o dos conceitos de massa e de força numa forma útil - os instrumentos cruciais de que ele necessita para moldar a metafísica celeste dos antigos para a física celeste dos modernos. Sem estes conceitos a máquina de Kepler é destruída. Tendo ele sido obrigado a providenciar forças separadas para a propulsão dos planetas tangencialmente ao longo das suas trajectórias bem como a componente radial do movimento. A força que emana do sol para manter os planetas em movimento tangencial diminui inversamente ao aumento das distâncias.
Dedica-se à especulação acerca das razões porque os períodos siderais no sistema de Copérnico deveriam ser maiores, no caso dos planetas mais distantes do sol e de qual a força que os impulsionaria.
Concebe uma imagem na qual compara a propagação da luz com as órbitas dos planetas. O decréscimo da intensidade da luz é associado ao aumento linear das circunferências para as órbitas dos planetas mais distantes.
Na sua física pré-newtoniana, onde a força é proporcional à velocidade e não à aceleração, Kepler encontra um uso já pronto para o inverso primeiro-poder da lei da gravidade. É exactamente o que ele precisava para explicar a sua observação de que a velocidade do planeta, na sua órbita elíptica, decresce linearmente com o aumento da sua distância em relação ao sol.
A segunda lei do movimento dos planetas encontra uma explanação física parcial na junção de vários postulados errôneos.
Mas nem sempre os resultados finais foram tão felizes. Na verdade, a hipótese respeitante às forças físicas actuantes sobre o planeta retardaram seriamente os progressos de Kepler em relaçãoà lei das órbitas elípticas- primeira lei. Tendo demonstrado que a trajectória do planeta não é um circulo mas uma figura oval ele esforçou-se por encontrar os detalhes da lei da força física que explicaria a trajectória oval quantitativamente. Mas após dez capítulos de entediante trabalho ele confessa que as causas físicas no 45º capítulo se desvaneceram com o fumo. Então no notável 57º capítulo, numa última e desesperada tentativa é efectuada para formular a lei da força. Kepler, atreve-se mesmo a entreter-se com a noção da combinação de influências magnéticas e forças animais no sistema planetário. Claro que a tentativa falha. O exacto relógio-máquina celestial não pode ser construído.
Apesar de todos os seus esforços no sentido de explicar a existência de uma força universal semelhante ao magnetismo, Kepler não o logrou alcançar, e ele não retomou o seu plano de mostrar como a sua concepção física podia ser apresentada mediante cálculos e geometria.
O seu longo labor não foi sequer reconhecido pelos seus pares. Galileu, ( ver G.Holton, 1998) apenas mencionou a sua teoria sobre a influência da lua nas marés e até mesmo Newton, manteve um estranho silêncio acerca de Kepler, apesar de utilizar as leis deste. Acabando, as três leis por serem tratadas essencialmente como leis empíricas...



2.4. Os Dois Critérios de Análise da Realidade - As Operações Físicas e as Harmonias Matemáticas da Natureza:

Kepler pretendia substituir a teologia e a metafísica de Aristóteles por uma filosofia ou física dos fenómenos celestes.Para ele o mundo real é mecânico, é um mundo de objectos e das suas interacções mecânicas, no mesmo sentido utilizado por Newton, nos Principia.( ver citação da pág. 62)
O mundo fisicamente real, que define a natureza das coisas é o mundo dos fenómenos explicáveis por princípios mecânicos.Mas o mundo fisicamente real é também o mundo das harmonias matemáticas que o homem pode descobrir no caos dos eventos. As harmonias devem ajustar a experiência.
Kepler acreditava que toda a natureza expressa regularidades matemáticas.

Para Kepler a lei é harmoniosa em três sentidos:
1. Na sua sintonia com a experiência.
Como deve ter sido doloroso, para um pitagórico da estirpe de Kepler ser obrigado a trocar os círculos pelas elipses, após os longos e duros labores observando os movimentos de Marte.
2. A noção de constância. Com a primeira lei de Kepler e o postulado das órbitas elípticas, a velha simplicidade foi destruída. A segunda e a terceira leis estabelecem a lei física da constância segundo um princípio ordenador numa situação mutável. Como os conceitos de momentum e calórico nas leis posteriores de constância.
3. Alei é harmoniosa numa acepção grandiosa, o ponto de referência fixo na lei das áreas iguais, o centro do movimento planetário, é o sol... Com a sua descoberta Kepler, tornou o sistema planetário verdadeiramente heliocêntrico, satisfazendo assim a sua instintiva demanda de um objecto material como o centro que legitimaria os efeitos físicos que mantém o sistema no movimento ordenado.

2.5. Um Universo Heliocêntrico e Teocêntrico. A Génese das Harmonias e as Duas Divindades de Kepler:

O universo é visionado como algo de belo, perfeito e divino, reflectindo a imagem de Deus. O sol, fonte de luz e calor, no centro deste universo, como centro matemático na descrição dos movimentos celestes, como agente físico central assegurando o movimento contínuo e como centro metafísico templo e símbolo de Deus.
Kepler, usando o característico método de raciocinar com base em arquétipos, vai estabelecer muitas consequências e analogias , nomeadamente a famosa comparação do mundo-esfera com a Trindade.
O poder do sol-imagem pode ser atribuído à influência neo-platónica. A descoberta de Kepler de um sistema verdadeiramente heliocêntrico não se reduz apenas a um acordo perfeito com a concepção do sol como uma entidade reguladora, mas conduziu-o, pela primeira vez a focar a atenção na posição do sol exclusivamente por argumentos da física.
A física dos céus de Kepler é heliocêntrica na sua cinemática, mas teocêntrica na sua dinâmica, onde as harmonias baseadas em parte nos atributos da Divindade, servem para complementar as leis físicas baseadas no conceito específico de forças quantitativas. A marca da física é mais visível na sua última grande obra, Harmonice Mundi ( 1619 ) A designada terceira lei do movimento planetário é anunciada sem nenhuma tentativa para deduzi-la de princípios mecânicos, enquanto que em Astronomia Nova, as forças magnéticas conduzem os planetas. No seu primeiro trabalho, ele mostrou que os fenómenos da natureza apresentam harmonias matemáticas subjacentes. Não tendo forjado as engrenagens da máquina do mundo, ele pode pelo menos apresentar as suas equações do movimento.
A génese das Harmonias de Kepler é o impulso pitagórico que o levou à descoberta das harmonias matemáticas escondidas na natureza pela entidade divina. Ele associa a quantidade per se à Divindade, defendendo que a capacidade do homem para descobrir harmonias- e concomitantemente a realidade- no caos dos fenómenos, se deve à conexão directa entre a realidade última, Deus, e a mente do homem.
A investigação da natureza transforma-se em investigação do pensamento de Deus, o Qual podemos apreender através da linguagem da matemática. O mundo é a imagem corpórea de Deus, tal como, a alma é a imagem de Deus incorpórea. Afinal, o princípio unificador de Kepler para o mundo dos fenómenos não se reduz meramente ao conceito de forças mecânicas, mas é Deus, expressando-se a Si Próprio em linguagem matemática.
No entanto, na alma de Kepler, a imagem de Deus é dual: junto do Deus Luterano, revelado pela Bíblia, encontra-se o Deus Pitagórico, inscrito na imediatez da natureza observada e nas harmonias matemáticas do sistema solar cujo design, foi traçado pelo próprio Kepler- um Deus que na contemplação do universo ele pode agarrar, como se O tivesse nas suas próprias mãos.
A expressão é maravilhosamente hábil: a visão de Kepler é tão intensa que o abstracto e o concreto se fundem. Aqui encontramos o enigma de Kepler, a explicação para a aparente complexidade e desordem dos seus escritos. Em apenas uma brilhante imagem, ele viu os três temas básicos que os modelos cosmológicos sobrepõem: o universo como máquina física, como harmonia matemática e como ordem teológica. E esta foi a composição em que as harmonias eram intermutáveis com as forças, em que a concepção teocêntrica do universo levou a resultados específicos de crucial importâcia para o nascimento da física moderna.


Temáticas implícitas e explícitas na obra de Kepler

1. Unidade do universo ( finito). (1)
2. Harmonia e regularidade matemática das leis da natureza.(2)
3. Noção de constância.
4. Deus- sol = causa e explicação última do universo.




(1) Kepler considera a noção de infinidade do Universo como puramente metafísica. Dado que não se baseia na experência, ele afirma nesse sentido que um corpo infinito não pode ser compreendido pelo pensamento. Com efeito, os conceitos do espírito a respeito do infinito referem-se quer à significação da palavra infinito, quer a alguma coisa que excede qualquer medida numérica, visual ou táctil concebível; isto é , a qualquer coisa que não é infinita em acção, visto que uma medida infinita não é concebível.

(2) Mas embora tivesse pouco uso prático imediato, a Terceira Lei é precisamente o tipo de lei que mais fascinou Kepler ao longo de toda a sua carreira. Ele era um matemático neoplatónico que acreditava que toda a natureza exprimia regularidades matemáticas simples, que era tarefa dos cientistas descobrir. Para Kepler e outros do mesmo género, uma regularidade matemática simples era ela própria uma explicação. Para ele, a Terceira Lei em si própria explicava porque razão as órbitas planetárias haviam sido dispostas por Deus do modo como foram, e esse tipo de explicação derivada da harmonia matemática é o que Kepler busca continuamente no céu. Ele propôs várias outras leis do mesmo tipo, leis que abandonámos porque, embora harmoniosas, não se adaptavam suficientemente bem à observação para terem importância. Mas Kepler não era selectivo. Pensou que descobrira e demonstrara um grande número destas regularidades matemáticas, e elas eram as suas leis astronómicas favoritas. (T. S. Kuhn, 1990, 250)


Bibliografia:

( 1988) Casini, P. , As Filosofias da Natureza, Lisboa, Presença.
(1978) Descartes, Oeuvres et Lettres, Bruges, Gallimard.
(1969) Gamow, George e Cleveland, John, M., Física, Madrid, Aguilar.
(19 ) Holton, G. et alt., Projecto Física, Lisboa, F. C. Gulbenkian.
(1998) Holton, G. , A Cultura Científica e os seus Detractores. O Legado de Einstein,Lisboa, Gradiva.
(1990) Kuhn, T. S., A Revolução Copernicana, Lisboa, Ed.70,
(1997) Luminet, J. -P. , A Física e o Infinito, Lisboa, Instituto Piaget.

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