Aporias (3)


Tomás ( que entretanto se aproximara) - Não posso deixar de reforçar a ideia do Paulo de que as concepções aristotélicas estão mais próximas da mecânica quântica e da teoria da relatividade do que as da física clássica. Para Aristóteles, uma vez que o lugar exerce uma certa influência, e que os lugares não diferem somente nas posições relativas, mas possuem potências distintas , o espaço tem um papel activo e dinâmico no movimento dos corpos. O próprio espaço fornece o impulso que conduz o fogo e as pedras para os seus lugares naturais de repouso na periferia e no centro. As interacções da matéria e do espaço determinam o movimento e o repouso dos corpos. Talvez por mera coincidência os conceitos espaciais englobados na teoria geral da relatividade de Einstein estão em aspectos importantes mais próximos de Aristóteles do que de Newton. E o universo de Einstein pode como o de Aristóteles e comtrariamente ao de Newton, ser finito.
Os meus primeiros contactos com as obras de Aristóteles, levantaram-me algumas perplexidades. Verifiquei que em assuntos diferentes dos da física, ele fora um observador arguto e naturalista, em áreas como a biologia ou a política ele foi penetrante e profundo. No entanto, as suas capacidades falharam redondamente quando aplicadas ao estudo do movimento.Porquê? Interrogava-me. Repentinamente, percebi que a mudança, para ele é a mudança-de-qualidade em geral, abrangendo quer a queda de uma pedra quer o desenvolvimento de uma criança. Reconheci que os elementos permanentes do universo de Aristóteles, não eram os corpos materiais mas as qualidades. Ora, num universo onde as qualidades prevalecem, o movimento é consequentemente concebido enquanto mudança de estado.
Também considero que é fundamental ter em conta a plasticidade dos textos, os seus diferentes níveis de abordagem, o facto de que há muitas formas de se ler um texto e de que as grelhas de leitura actuais não são as mais adequadas aos textos do passado. Daí a necessidade de recorrer ao método hermenêutico para poder decifrar as diferentes visões da natureza e as concomitantes linguagens explicativas da mesma inerentes aos vários modelos científicos e não incorrer em erros de interpretação grosseiros. O historiador para retomar o passado deve proceder a um reajustamento conceptual fundamental.

Marta (divagando) - Penso que um dos maiores problemas hermenêuticos relativamente aos textos aristotélicos reside no facto de grande parte dos seus leitores e intérpretes o tomarem à letra ou seja considerarem as suas problematizações e tentativas de solução como sendo as respostas definitivas.

Tomás (meditativo) - Voltemos ao tema do movimento em Aristóteles. Ele concebe , vê o movimento como uma mudança de estado, toda a mudança é de algo para algo. No caso da queda de uma pedra, ele via uma mudança de estado, mais do que um processo. Ou no caso dos objectos oscilantes, para os aristotélicos um corpo oscilante é apenas um corpo que está caindo com dificuldade enquanto que para Galileu o corpo oscilante é um pêndulo e a partir daí construiu uma nova dinâmica. Perante o mesmo fenómeno e com base nos dados, nas informações, nos aparelhos conceptuais e nos esquemas intelectuais de que dispõem, os investigadores interpretam-no de modos diferentes e em função do paradigma em que se inserem.

Alexandre - Julgo que as diferenças ao nível da observação e da interpretação entre Aristóteles e Galileu são muito profundas e não se limitam a uma diferença de paradigma. Galileu inscreve-se na tradição platónica de raíz matemática...

Tomás ( espantado) - E isso não se prenderá, precisamente com a diferença de paradigmas?
Claro que também se podem destacar e analisar outro tipo de problemas, e estou a pensar em alguns dos paradoxos da física aristotélica. Aristóteles em conformidade com a sua concepção de movimento mede a quantidade e a velocidade de um determinado movimento em termos dos parâmetros que descrevem os seus pontos finais, consequentemente a sua noção de velocidade remete implicitamente para o conceito actual de velocidade média. No entanto, a inconsistência e incoerência dos critérios utilizados por Aristóteles para caracterizar a velocidade, não distinguindo, nomeadamente a velocidade instantânea da velocidade média, revelam algumas semelhanças com o modo como as crianças e estou a referir-me às experiências de Piaget, percepcionam e julgam este fenómeno.
O sucesso de Aristóteles deve-se à sua capacidade de expressar através de uma linguagem abstracta, racional e de uma metodologia lógica concepções animistas ancestrais da natureza, ocultas por uma conceptualização altamente elaborada. As suas noções de espaço e de tempo são elucidativas desses resíduos. Afinal não há diferenças substanciais entre a afirmação aristotélica de que a pedra cai da mão para atingir o seu lugar natural no centro do universo e a atitude da criança que responde que o balão sobe porque gosta do ar ou a caixa cai porque quer...

Marta (indignada) - Não aceito, essa identificação entre o pensamento de Aristóteles e um qualquer estádio operatório-concreto do desenvolvimento infantil.! Como explicas então toda a sofisticação do seu pensamento em outras áreas, inclusivamente na matemática? Ele não tinha era ,atrás de si toda a tradição medieval e toda uma parafernália de objectos e instrumentos que foram surgindo entretanto. Para além do mais, li algures que não se observam diferenças significativas ao nível das formas de pensar, entre um Cro-Magnon e um Sapiens dos nossos dias... Logo Aristóteles não estaria na infância do raciocínio, quando muito estaria no alvorecer da metafísica, como diria Heidegger.

Tomás (estonteado e bem humorado) - Que exagerada! Mas pode dizer-se que se encontrava na infância da ciência! Entretanto anoiteceu e careces urgentemente de alimento, porque já começas a delirar!

Paulo (bem disposto) - Carecemos todos! Precisamos de jantar, dar férias aos diálogos sobre Aristóteles, descontrair, divagar sobre outros assuntos e repousar para retomarmos as nossas reflexões. E tu Tomás, ficas desde já requisitado para debateres comigo aspectos da cosmologia do discípulo infiel de Platão. Serás sucedido pela Susana, a seguir à ceia...

Neste momento aproximou-se deles Susana, que estivera a traduzir do grego, passagens da física de Aristóteles.

Tomás e Susana (simultanemente, inclinando as cabeças) - Ao vosso inteiro dispor, ilustre senhor!

Marta (divertida) - É favor preencher as fichas de requisição no gabinete da coordenadora.

Paulo (conivente) - Folgo muito! Então Susana deixaste os alfarrábios gregos para te juntares a nós?

Susana (rindo) - O verdadeiro motivo foi o jantar ...

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