Aporias (5)

Foram para o escritório onde já se encontrava Alexandre, muito concentrado a escrever num caderno tipo contabilista do século XIX.

Tomás (previdente) - Vou fazer- te um relato das minhas pesquisas sobre a cosmologia aristotélica e peço-te que guardes a tua apreciação crítica, da qual necessito, para o final da minha exposição, por motivo de ordenação dos meus juízos e para não perder o seu fio condutor.

Paulo (atento) - Sou todo ouvidos!

Tomás (categórico) - O universo de Aristóteles é auto-suficiente e auto-contido, pleno e finito. Divide-se em mundo supra-lunar e mundo sub-lunar, sendo o primeiro constituído pelos planetas, as estrelas e as esferas, compostos por éter - o único elemento celeste, cristalino, puro, inalterável, transparente e sem peso - reúne um conjunto homocêntrico de armações que se encaixam umas nas outras para formar uma esfera gigante côncava cujas superfícies formam o exterior da esfera de estrelas e a face interna da esfera homocêntrica da lua, não está sujeito à corrupção nem à mudança e o movimento dos seus corpos é circular, perfeito; o segundo, situado abaixo da esfera da lua, cujos seres são compostos pela combinação em proporções diferentes de quatro elementos- a terra, a água, o ar e o fogo- está sujeito à geração e à corrupção, sendo o movimento dos seus corpos linear e imperfeito.
O universo consiste numa série de esferas concêntricas. A terra, o elemento mais pesado, é uma esfera de dimensões relativamente pequenas, em repouso no centro geométrico do universo, a água circundaria a terra, seguida do ar e finalmente do fogo, o elemento mais leve. A região terrestre é perturbada pelo movimento da fronteira com a lua que, empurra constantemente camadas de fogo para baixo dela estabelecendo correntes que impelem e misturam os elementos em todo o mundo sublunar. Consequentemente, os elementos nunca podem ser observados no seu estado puro, pois a corrente contínua de impulsos, com origem primeiramente na esfera da lua e, por fim na esfera das estrelas, mantém-nos misturados em várias e diversas proporções. Assim a estrutura das armações é aproximada, o elemento apropriado predomina na sua região, no entanto cada elemento contém pelo menos traços dos outros, o que transforma as suas características, gerando segundo as proporções da mistura, as diferentes substâncias que podem ser encontradas na terra. Os movimentos do primeiro céu são a causa de todas as mudanças observadas no mundo infralunar.
A concha mais externa do universo, o primeiro céu, é uma esfera finita contendo as estrelas fixas. Estas estrelas não possuem movimento próprio, mas a rotação uniforme do primeiro céu impulsiona-as e faz com que efectuem uma revolução em vinte e quatro horas. No que concerne aos movimentos mais complexos do sol, da lua e dos planetas, Aristóteles, seguiu, com algumas correcções, a teoria de Eudoxo, tal como esta fora desenvolvida pelo seu amigo Calipo. Eudoxo, através de curiosos artifícios matemáticos, elaborou a teoria da decomposição do movimento aparente do sol e da lua em três movimentos de rotação...

Alexandre ( que entretanto abandonara os seus escritos e escutara atentamente as últimas palavras de Tomás) - E a parte mais picante deste episódio, é que quer Eudoxo quer Calipo, conceberam a teoria , apenas numa perspectiva matemática. Mas, Aristóteles, apercebeu-se de que a sugestão da rotação concêntrica das esferas é passível de se adaptar ao seu sistema e passou a identificá-la com a realidade, considerando-a uma representação do mecanismo actual dos céus. No entanto, deparou-se com uma grave dificuldade, se todo o universo é um sistema de esferas concêntricas em contacto- e devem estar em contacto porque ele não admite o vazio, uma vez que a natureza tem horror ao vácuo- a esfera que transporta um corpo celeste arrastará no seu movimento de rotação, a esfera exterior do sistema do corpo seguinte, contando a partir do interior e interferiria com o movimento de cada corpo. Com o intuito de colmatar , esta falha, Aristóteles vai preconizar a existência deesferas destinadas a reagir, movimentando-se em direcções contrárias às das esferas originais e que possibilitam ao movimento da esfera exterior de cada sistema propagar-se para fora de todo o sistema situado nelas. Obtém deste modo, 55 esferas, se lhes adicionarmos as quatro esferas dos elementos teremos um universo composto por 59 esferas concêntricas

Paulo (polémico) - Isso faz-me pensar que uma teoria nunca concorda com todos os factos conhecidos do seu domínio, até porque os factos são constituídos por ideologias anteriores. As discordâncias numéricas e as discrepâncias qualitativas são frequentes na ciência. Relativamente às primeiras podemos demonstrar que são abundantes. Assim a concepção coperniciana, era inconsistente com factos , na época elementares e óbvios, escrevendo, Galileu neste sentido que,o seu espanto não tinha limites, quando pensava que Aristarco e Copérnico conseguiram impõr a razão aos sentidos, a tal ponto que, apesar dos segundos, a primeira foi senhora. Tanto, era assim que para difundir o heliocentrismo Galileu, recorreu à propganda. Newton, Bohr e Einstein, entre outros, são também casos exemplares.

Alexandre (em desacordo) - Galileu procurou comprovar as teses de Copérnico e outras, recorrendo, bastante proveitosamente, à matemática, à experiência pensada e à utilização de instrumentos, tudo isto aliado a uma observação sistemática, e ao recurso à experimentação das hipóteses.

Paulo (insistente) - Na verdade a teoria da percepção aristotélica, não incentivou a utilização de instrumentos, sobretudo a interpretação que dela fizeram os escolásticos medievais, que consideravam inconcebível a existência de fenómenos inacessíveis ao conhecimento humano, em virtude da sua natureza. Devo realçar que o próprio Aristóteles demonstra nos seus escritos maior abertura de espírito.Contudo, nada disto não invalida a minha tese de que Galileu foi obrigado a desenvolver uma bem sucedida campanha de propaganda em defesa de uma teoria, na época insustentável, e de que é exemplo convincente a inversão por ele operada do argumento da torre.

Alexandre (céptico mas sem argumentos) - O teu ofuscante discurso não me convenceu mas, deixou-me boquiaberto e sem palavras, vou lançar-me nos braços de Morfeu!

Paulo (insistente) - Terás que me ouvir até ao fim...
A hipótese geométrica e a teoria aristotélica do conhecimento e da percepção adaptam-se bem uma à outra. A percepção fundamenta a teoria da locomoção que implica a terra imóvel e é por seu turno um caso especial de uma perspectiva geral do movimento englobando a locomoção, o aumento, a diminuição, a alteração, a geração e a corrupção. A percepção, é um processo através do qual a forma de um objecto percepcionado penetra no sujeito percepcionante , de tal maneira que, em certo sentido assume as propriedades do objecto.
A experiência é decisiva para o conhecimento porque em circunstâncias normais, as percepções do observador contém as mesmas formas que residem no objecto. As explicações, não são exteriores, são uma consequência directa da teoria geral do movimento, conjugada conjugada com a concepção fisiológica segundo a qual as sensações se regem pelas mesmas leis físicas que o restante universo.
Compreendemos, melhor actualmente quais as razões que possibilitaram que uma teoria do movimento e da percepção, hoje considerada falsa, tivesse tido tanto sucesso.
O sistema aristotélico era racional, coerente, de acordo com os dados da observação, não há argumentos empíricos decisivos para a refutar...
As cosmologias não aristotélicas só podem ser verificadas depois de termos leis e observações separadas com o auxílio de ciências auxiliares que descrevem os processos complexos que ocorrem entre a visão e o objecto, e os processos ainda mais complexos que se processam entre a córnea e o cérebro.

Alexandre (ensonado) - Tens toda a razão do mundo, e eu todo o sono ... Boa noite!

Tomás ( descontente) - E nem me deram a possibilidade de terminar o meu relatório!

Paulo (solícito) - Repito, sou apenas ouvidos!

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