Aporias


Nota prévia:




Neste diálogo as personagens de Alexandre, Paulo e Tomás, expressam concepções, respectivamente de Alexandre Koyré, Paul Feyerabend e Thomas Kuhn, explícitas/textuais ou implícitas/adaptadas e deduzidas, extraídas das suas obras referenciadas na bibliografia. Marta e Susana, simbolizam duas especialistas de Aristóteles, Marta Nussbaum e Susanne Mansion, reunem e comunicam informações provenientes de múltiplas fontes.
A opção pela forma diálógica, deve-se à possibilidade que esta oferece de mostrar , comparar, confrontar ou simplesmente juntar perspectivas e interpretações diferentes sobre os mesmos problemas. Permitindo reter o que de mais válido ou interessante, têm as várias abordagens. No dizer de Feyerabend, não há ideia por mais antiga e absurda, que não seja susceptível de melhorar o nosso conhecimento. (1993)
Contrariamente ao que se verifica nos diálogos platónicos, não se pretendem destronar os sofistas, que representam uma leitura entre outras da realidade, mas tão só dissuadir os dogmáticos.


Os que pretendem investigar com êxito devem começar por colocar bem as dificuldades, pois o êxito posterior consiste na resolução das dúvidas anteriores. Não é possível desatar um nó que se desconhece.Porém a dificuldade do pensamento, manifesta o nó em relação com o objecto, pois na medida em que se sente a dificuldade, ocorre-lhe algo de semelhante aos que se encontram atados. Em nenhum dos casos é possível seguir adiante. Por isso é preciso considerar bem todas as dificuldades(...) Aristóteles, Livro III, 1, 995a



Aporias(1)

O céu azul, azul. Azul da cor do meio-dia. O perfil de uma colina arborizada, avista-se do terraço com laranjeiras, loureiros e palmeiras dentro de jardineiras de terracota, onde à sombra de uma glícinia, Paulo, Marta, Tomás, Susana e Alexandre, absorvem a luz, embebedam-se de azul e conversam. Dialogam sobre o projecto comum que os reuniu ali, a elaboração e publicação de um conjunto de artigos acerca das concepções cosmológicas, físicas e matemáticas de Aristóteles.

Marta (coordenadora do projecto) - Tanta luz! Lembra-me a Grécia, a sua luminosidade estonteante e por analogia a clareza do pensamento de Platão e de Aristóteles.

Paulo (o crítico de serviço) - Não me parece assim tão evidente considerar os sistemas desses autores de uma clareza sem sombras. Pensa na função dos mitos em Platão, na amargura das Leis. Pensa também nas aporias de Aristóteles, em todas as questões por ele deixadas em aberto, nas suas contradições conscientes ...

Marta ( conciliadora) - Tens razão! Eu estava a devanear, a poetizar! Até porque nos encontramos num momento de pausa dos nossos trabalhos! Mas o teu comentário fez-me pensar num aspecto que me parece fundamental, a desmistificação de uma certa imagem de Aristóteles representado como um mestre dogmático, sem dúvidas e cheio de certezas. Aristóteles ao contrário do que se julga foi um dos filósofos mais flexíveis, na medida em que concebia a filosofia enquanto tentativa contínua de resolver problemas... Segundo ele antes de empreender o estudo de uma ciência é necessário determinar previamente as dificuldades a resolver, o nó do problema...


Paulo (concordante e impaciente) - Sim, sim ... Por isso referi há pouco as aporias. Aristóteles no livro I da Metafísica defende que o espanto constitui o ponto de partida da reflexão filosófica, espanto esse provocado por um problema inicial - aporia - dificuldade ou dúvida experimentada face a argumentos contrários. Ele, no fundo advoga que se devem listar as respostas já existentes e os becos sem saída do pensamento... No livro III, a aporia tem o sentido de uma exploração de diversas vias, assumindo as características de um processo dialéctico em que a investigação das opiniões anteriores é um preliminar imprescindível para se chegar a uma solução. Esta pode revestir-se de uma variedade de forma: pode validar teses anteriores, gerar uma hipótese ou permitir a existência de uma contradição racional.

Marta (atenta) - Mas, qualquer que seja a solução alcançada, todo este processo, desde a apresentação do problema até à sua resolução, é uma tarefa árdua e difícil.

Paulo (entusiasmado) - Seria interessante, mencionar algumas das contradições de Aristóteles, exemplificativas da riqueza e abertura do seu pensamento. Estou a pensar por exemplo, na questão da fundamentação de um ou múltiplos primeiros motores, transcrita no capítulo 8 do livro XII ...

Marta (interrompendo) - Penso que a importância que estás a dar a essa hipótese é exagerada. Tal teoria surge primordialmente como teoria astronómica e não tanto como problema ontológico, caso existissem vários céus haveria múltiplos primeiros motores, mas mesmo assim seria necessário um que superintendesse todos os outros. Se na verdade, ele admitisse a existência de uma multiplicidade de primeiros motores, não vincaria tão acentuadamente ao longo da Metafísica, a ideia de que todos os seres tendem para um telos, para um princípio de unidade, porque insistiria ele na noção de indivisibilidade do primeiro motor?

Paulo (ironicamente) - Não te sabia tão neo-tomista! A simpatia que Aristóteles eventualmente nutria pela hipótese monista, levou-o certamente a elaborar uma argumentação mais consistente a favor da mesma, mas, não o impediu de considerar seriamente e bem mais seriamente do que tu, a tese pluralista.

Marta (teimosamente) - Parece-me que se ele creditasse a tese da multiplicidade de primeiros princípios, estaria a instaurar a dispersão ao nível dos entes, pois estes tenderiam para diversos pontos e não para um centro único, invalidando as teses anteriores em que ele afirma a tendência geral dos seres para a harmonia do conjunto. Para além do mais,logo no capítulo seguinte, ele trata da natureza da Inteligência divina e não das Inteligências... e julgo ser esta designação bastante esclarecedora!

Continua ...

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