Entardecer
Contemplo o fim do dia, ameno, róseo e violeta. Hoje não se vê o sol desaparecer em tons de vermelho e laranja. Lembro-me que o encanto melancólico do crepúsculo é narrado pelo sonhador de Noites Brancas de Dostoievski:
"(…) Nastenka, minha amiga, há uma hora do dia de que gosto extraordinariamente. É aquela em que cessam quase todas as ocupações funções e obrigações e em que toda a gente se apressa a voltar a casa para jantar ou descansar e durante esse mesmo tempo imagina ir encontrar ainda outros motivos de alegria na noite e em todo o tempo de liberdade que resta. A essa hora, também o nosso herói - pois permitir-me-á, Nastenka, que faça a minha narrativa na terceira pessoa, pois se o fizesse na primeira pessoa envergonhar-me-ia terrivelmente assim, portanto, a essa hora também o nosso herói, que tão-pouco está desocupado, segue os outros. Uma bizarra sensação de contentamento, porém, resplandece no seu rosto pálido e levemente enrugado. Ele não permanece indiferente ao pôr do Sol que, lentamente, estende o seu manto sobre o céu frio de Sampetersburgo. Se dissesse que ele o contempla, mentiria; não o contempla, olha-o, sim, mas sem disso se aperceber, tal como um homem fatigado ou ocupado, nesse .mesmo momento, na observação de outro motivo mais interessante, de maneira que só por instantes, quase involuntariamente, ele pode conceder atenção àquilo que o rodeia. Sente-se satisfeito porque interrompeu, até ao dia seguinte, assuntos aborreci dos e contente como um colegial a quem libertassem dos deveres escolares mandando-o para o recreio, para os seus jogos e travessuras favoritas.
«Olhe-o disfarçadamente, Nastenka: verá logo que esse sentimento de alegria já se reflectiu felizmente nos seus débeis nervos, actuando sobre a sua imaginação doentiamente excitada. Veja, pensa em. qualquer coisa... No que será? No seu jantar? Em como irá passar o serão de hoje? O que olhará daquela maneira? Será aquele cavalheiro de ar grave, que acaba de cumprimentar de maneira tão pitoresca uma senhora que passou por ele, há poucos momentos, na sua elegante carruagem, na sua flamante cabeça? Não, Nastenka, o que lhe poderia agora .interessar tais ninharias? Agora é rico, rico na sua vida interior; enriqueceu de um momento para o outro e não foi em vão que brilhou tão radiosamente diante dele o derradeiro raio do Sol moribundo, fazendo florescer no seu coração rejuvenescido um enxame de sensações. Agora, mal repara no caminho que segue, embora os mínimos pormenores desse mesmo caminho lhe mobilizassem habitualmente a atenção.(...)" [Dostoievski, Noites Brancas, (Lisboa, Publicações Europa-América, 1973, pp.50-54)].
"(…) Nastenka, minha amiga, há uma hora do dia de que gosto extraordinariamente. É aquela em que cessam quase todas as ocupações funções e obrigações e em que toda a gente se apressa a voltar a casa para jantar ou descansar e durante esse mesmo tempo imagina ir encontrar ainda outros motivos de alegria na noite e em todo o tempo de liberdade que resta. A essa hora, também o nosso herói - pois permitir-me-á, Nastenka, que faça a minha narrativa na terceira pessoa, pois se o fizesse na primeira pessoa envergonhar-me-ia terrivelmente assim, portanto, a essa hora também o nosso herói, que tão-pouco está desocupado, segue os outros. Uma bizarra sensação de contentamento, porém, resplandece no seu rosto pálido e levemente enrugado. Ele não permanece indiferente ao pôr do Sol que, lentamente, estende o seu manto sobre o céu frio de Sampetersburgo. Se dissesse que ele o contempla, mentiria; não o contempla, olha-o, sim, mas sem disso se aperceber, tal como um homem fatigado ou ocupado, nesse .mesmo momento, na observação de outro motivo mais interessante, de maneira que só por instantes, quase involuntariamente, ele pode conceder atenção àquilo que o rodeia. Sente-se satisfeito porque interrompeu, até ao dia seguinte, assuntos aborreci dos e contente como um colegial a quem libertassem dos deveres escolares mandando-o para o recreio, para os seus jogos e travessuras favoritas.
«Olhe-o disfarçadamente, Nastenka: verá logo que esse sentimento de alegria já se reflectiu felizmente nos seus débeis nervos, actuando sobre a sua imaginação doentiamente excitada. Veja, pensa em. qualquer coisa... No que será? No seu jantar? Em como irá passar o serão de hoje? O que olhará daquela maneira? Será aquele cavalheiro de ar grave, que acaba de cumprimentar de maneira tão pitoresca uma senhora que passou por ele, há poucos momentos, na sua elegante carruagem, na sua flamante cabeça? Não, Nastenka, o que lhe poderia agora .interessar tais ninharias? Agora é rico, rico na sua vida interior; enriqueceu de um momento para o outro e não foi em vão que brilhou tão radiosamente diante dele o derradeiro raio do Sol moribundo, fazendo florescer no seu coração rejuvenescido um enxame de sensações. Agora, mal repara no caminho que segue, embora os mínimos pormenores desse mesmo caminho lhe mobilizassem habitualmente a atenção.(...)" [Dostoievski, Noites Brancas, (Lisboa, Publicações Europa-América, 1973, pp.50-54)].
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