1.3. Confidências de Uma Psicopata
Trabalhos burocráticos deixaram-me com pouco tempo para escrever, por isso aqui vai um conto que não é inédito.
Confidências de Uma Psicopata
Percebi, desde muito cedo, ser o objecto privilegiado da incompreensão dos que me rodeavam, e ainda hoje continuo a pensar assim, porque não mudo de ideias com facilidade. Brotei de jacto do meio da noite, num monte caiado de branco e azul perdido, num vale recôndito e obscuro do concelho de Montemor-o-Novo. Foi no dia em que os americanos chegaram à lua, mas eu não tive direito nem a médico, nem a parteira nem sequer a uma alma curiosa. Apenas a minha avó. Desde logo dei trabalhos à minha mãe, pois embora descida de maneira tão insólita quanto rápida, deixei-lhe colados ao útero a placenta e demais excrescências. Ao contrário de mim, pareciam não querer que as desalojassem.
A minha avó sentiu relutância em incomodar o médico a horas tão impróprias, expondo a filha ao perigo de uma infecção letal. Nos anos seguintes demonstraria ser uma velha megera.
Ainda antes de abrir os olhos comecei a balouçar violentamente o meu enorme crânio de recém-nascida. Fazia-o da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, tão afincadamente que em menos de nada lhe tomei o gosto. Ainda hoje esses movimentos, são a minha marca registada, sobretudo à hora de me deitar. A minha irmã, que era uma criança com pretensões a inteligente, costumava ficar junto ao meu berço, mirando-me estonteada.
Meu pai sempre distante sonhava com filhos machos. Coerente com os seus desejos, não me visitou durante meses. Mais tarde encantar-se-ia, efemeramente, com o azul dos meus olhos e com a alvura da minha pele. O despotismo acabaria por derrotar o encantamento.
Passada a fase oral, como diria o Dr.Freud, seguiram-se peripécias várias. Evoco o episódio da ingestão de insecticida, quando a minha mãe teve de me arrastar em estado quase mortal até às urgências do hospital mais próximo. Aí fui submetida à inevitável lavagem ao estômago. Situações semelhantes suceder-se-iam com vidros, agulhas, baloiços e muitos outros objectos de risco.
Ainda minúscula, eu fugia de casa vezes sem conta. Desesperava parte da família e dos serviçais com os meus frequentes e prolongados sumiços. Agarrava na muito amada malinha azul e deambulava pelas casas das vizinhas e pelos jardins. Quando lograva surripiar uns trocos à minha mãe, enchia-me de guloseimas no mini-mercado S.João de Deus.
Também me divertia a provocar as empregadas, inspeccionava-lhes as carteiras, espreitava-lhes a correspondência. Uma delas, a Ema que tinha o namorado na guerra do Ultramar e lhe enviava aerogramas picantes, tornou-se a certa altura o objecto preferido das partidas. Quando me cheirava a aerograma novo, reunia as minhas vizinhas e fazia leituras públicas dos desabafos eróticos do soldado apaixonado. Outra vítima era o meu tio paterno que montara escritório em nossa casa. Ele tinha um affaire com a secretária, daí que eu não perdesse uma oportunidade de esconder-me atrás de um arquivador. Não só perturbava o romance, como também ia chantageando o meu tio, que só a troco de algum dinheiro conseguia a minha retirada.
Enquanto isso meu libidinoso progenitor, ignorando as escapadelas, veladas pela esposa, da benjamim, ia apalpando as criadas em casa e no estabelecimento comercial as empregadas. Minha mãe refugiava-se no mundo do consumo e da religião. Adquiria roupas que não vestia, jóias, cristais e porcelanas que não usava, alimentos de todo o tipo que devorava, frequentando missas, confessionários, sacristias, conventos, cursos de cristandade, vigílias carismáticas, proporcionando lautos jantares a abades e abadessas. Pais deste calibre justificam todo o meu sinuoso percurso.
E o que dizer da escola .... Os primeiros anos passaram desleixados mas sem reprovações. O ingresso no então curso geral revelou-se fatídico, duas chumbadelas seguidas resultaram no abandono escolar, em parte por imposição paterna.
Eu era uma rapariga enfezada, magra e pequena, uma típica maria-rapaz. Lembro-me da menarca me ter aparecido já feitos os quinze anos, quando já tinha desistido de esperar por ela. O meu programa, ao tempo, resumia-se a dar largas à minha hiperactividade, fugir, saltar, brincar, correr, consumir compulsivamente, desesperar a família, mudar de roupa três vezes por dia, e finalmente namorar. Também adorava e adoro mentir, criar situações fictícias, iludir e iludir-me. Abandonei a escola mas sou brilhante no estilo epistolar, uma exímia narradora e actriz, daí escrever estas confidências.
As minhas paixões eram intensas, desastrosas e efémeras. Em casa, minha mãe já não conseguia proteger-me e ocultar o meu comportamento libertino, as crises avolumavam-se em função da moleza dela e da índole autoritária e agressiva de meu pai.
No dia em que fiz dezoito anos, fugi mais uma vez de casa com o dinheiro acumulado ao longo de meses, conseguido à custa de furtos sucessivos à mãe e ao negócio do pai.... Recordo, ainda, entre outras situações semelhantes, a figura tonta da mãe que quase me partiu de pancada em busca de um dinheiro misteriosamente desaparecido, que eu sabia ciosamente escondido debaixo do colchão de um dos muitos quartos vazios perdido num dos compridos corredores da casa. Revejo deliciada minha irmã, criatura com pretensões a justiceira e pacifista, crédula e indignada implorando tréguas...
Como eu adorava provocar a minha irmã e desempenhar depois o papel de vítima da ira dela e fazer com que ela fosse repreendida e punida pelo furor da autoridade materna.
Não deixei bilhete de despedida à mãe, simplesmente desapareci, segui no comboio rumo a Lisboa, feliz pela excitante partida. Vivi intensa e lautamente os prazeres da capital. Foram tantas as solicitações, que ao cabo de três meses, esgotados os recursos tão laboriosamente angariados, me vi forçada a recorrer à minha generosa mãe implorando-lhe apoio psico-económico. Instalada num óptimo hotel, inspirada, criei o quadro mais negro e comovedor dos meus últimos dias longe da sua protecção.
A alegria imensa e patética de minha mãe imediatamente me proveu com os bens tão ansiados. Pelo meu lado, fiz promessas mil de retomar aplicadamente os estudos. Continuei a viver lauta e despreocupadamente, financiada pela ingenuidade materna. Iniciei então uma longa digressão por internatos, externatos, institutos de línguas e turismo, colégios e cursos vários nas principais cidades do país.
Uma vez, foi de repente num Sábado, quis visitar a Madeira para ir ao encontro da paixão do momento. Fui tentar comprar bilhete no aeroporto pois queria partir logo. Informaram-me que os aviões estavam lotados até ao fim de semana seguinte. Vi-me forçada a representar o papel de uma pobre estudante desesperada, cujo pai doente terminal a aguardava para poder dar o último suspiro. A minha actuação foi tão convincente que me ofereceram o jantar, conseguiram arranjar-me bilhete para viajar no dia seguinte e pagaram-me a estadia num hotel de Sábado para Domingo.
Numa das suas estadias em Lisboa minha mãe levou-me a um centro de psicologia clínica, o Psicopromotor. Após muitos testes, questionários e entrevistas à mãe e à filha, fizeram a grande revelação confidencial, todos os indícios conduziam a um único e possível diagnóstico a filha só podia ser psicopata. Consultei o dicionário e fiquei a saber que psicopata é aquele que sofre de doença mental e tem um comportamento desajustado em relação à sociedade. No meu caso acrescia, segundo li subrepticiamente no relatório, ter a idade mental de nove anos e a predisposição para responsabilizar os outros pelos meus desaires.
Depois de vinte anos de casados, os meus neuróticos pais divorciaram-se, a separação constituiu um desaire económico para mim ao constatar a perda da fonte mais abundante de fomento das minhas múltiplas necessidades.
Entretanto numa noite de Verão minha irmã sofreu um acidente. Convencera-a a sair comigo sem permissão da mãe. Ela acabou por ceder, contrariada saltou comigo a janela, jantamos num afamado restaurante. Caminhávamos em direcção ao Regalenga, quando eu tropecei nela fazendo-a saltar do passeio, no mesmo instante passou célere um carro que a colheu e atropelou deixando-a sem sentidos. Conduzida para o Hospital Distrital de Évora faleceu ao fim de um mês em coma.
Às repreensões e lágrimas amargas da mater dolorosa seguiram-se a autópsia, a interminável vigília — afinal tão proveitosa para mim do ponto de vista económico, dado o estado lastimoso de minha mãe e o seu desprendimento do mundo material — o funeral e o processo contra o condutor bêbado, absolvido em virtude das declarações que prestei em tribunal enquanto testemunha principal do acidente.
Correram os dias, diminuíram as mágoas. Retomei os velhos hábitos, vivia fugindo, perseguindo paixões, voltando/revoltando para junto da minha sempre prestável mãe. Mandava-lhe as contas das incontáveis compras que fazia ou usava os cheques dela com a assinatura falsificada por mim.
De um dos meus muitos romances resultou surpreendentemente, pois julgava-me estéril, uma criança. Durante os meses de gestação comportei-me de modo invulgar, permaneci grande parte do tempo em casa, segui uma dieta equilibrada, não fumei nem bebi. Merecia uma compensação. A hora do parto chegou de rompante, saía da casa de banho quando senti um líquido quente a escorrer e um objecto estranho entre as pernas. Inspeccionei, era a cabeça do rebento e entretanto nasceu o resto do corpo. Fui de ambulância para a Climor já com a criança sobre a barriga com o cordão umbilical ainda por cortar. Todos se espantaram com tamanha facilidade. O bebé foi imediatamente encaminhado com a ajuda da comunidade freirática para a adopção ilegal, mas muito mais eficaz. Minha mãe junto de quem me refugiei não aceitava o aborto. Aqui dou lugar à pergunta que todos estarão a fazer: Por onde andará essa criança? Não tardará o dia em que estarei num programa de televisão chorando pela sua presença e carinho.
Em Montemor-o-Novo, pois embora nascida no monte passei a infância e adolescência nesta cidade, era conhecida por despenteada mental, apreciada por aqueles a quem nos momentos de fulgor económico proporcionava ofertas e festas e vituperada pelos amantes da moral pública e dos bons costumes. Apontada como exemplo de hedonista por uns e imoral por outros. Após a morte de minha mãe, acontecimento associado ao meu descalabro financeiro os dois grupos uniram-se quanto ao modo de me tratarem.
Desprovida de fundos procurei apoio junto de alguns familiares, indiferentes não se comoveram nem tão pouco atenderam os meus insistentes pedidos. Um episódio ocorrido com uma sobrinha que se deslocara a Lisboa para passar um fim de semana comigo motivou a indignação da família contra mim. Em passeio à Feira da Ladra pedi-lhe que entrasse no autocarro sem pagar bilhete, assegurei-lhe ser uma prática corrente em Lisboa e quase sem risco. A campónia recusou e preferiu combinar encontrar-se comigo na Praça do Comércio uma hora depois. Entretanto, eu deparei com alguém que não via há muito tempo e, naturalmente, esqueci-me do encontro na Praça do Comércio. A minha sobrinha esperou até ficar em pânico. Em vez de se dirigir de imediato para minha casa, lembrou-se de ir ao Posto de Turismo dizendo que estava perdida em Lisboa e precisava de ligar para um familiar. Perante, tamanha atrapalhação, a funcionária permitiu que fizesse uma comunicação gratuita para o meu telemóvel. Quando cheguei ao Posto de Turismo senti-me vexada com a atitude pouco adequada da rapariga. Para cúmulo ela foi logo relatar o acontecimento a toda a família antes de eu ter conseguido obter qualquer tipo de apoio.
Sózinha, forçada a trabalhar optei pela hotelaria, área na qual iniciara um curso que nunca terminei por motivos alheios à minha vontade, doenças, inimizades e que me proporcionaria a oportunidade de alimentar-me de borla, conhecer mais gente, estabelecer contactos, mudar de estatuto e quiçá viajar. Quase cheguei a gerente de um restaurante algarvio de elite, mas as muitas intrigas forjadas pelos outros empregados inviabilizaram tal promoção. Devo confessar que ao longo da minha peregrinação por restaurantes, hotéis e bares no continente e nas ilhas, só me tenho deparado com enredos e gente mesquinha que me dificultava a vida e me impedia de atingir os meus objectivos e realizar os meus sonhos. Foram muitas as desilusões, destruíram o meu projecto de construir uma carreira brilhante no ramo hoteleiro. Tornava-se urgente alterar uma situação insustentável. Iniciei uma nova fase e adoptei outro estilo, mais pós-moderno de vida. Vivo de biscates, empregos de ocasião, pequenos golpes. Aproveito todo o tipo de promoções e concursos.
Montemor-o-Novo Julho 2001
Confidências de Uma Psicopata
Percebi, desde muito cedo, ser o objecto privilegiado da incompreensão dos que me rodeavam, e ainda hoje continuo a pensar assim, porque não mudo de ideias com facilidade. Brotei de jacto do meio da noite, num monte caiado de branco e azul perdido, num vale recôndito e obscuro do concelho de Montemor-o-Novo. Foi no dia em que os americanos chegaram à lua, mas eu não tive direito nem a médico, nem a parteira nem sequer a uma alma curiosa. Apenas a minha avó. Desde logo dei trabalhos à minha mãe, pois embora descida de maneira tão insólita quanto rápida, deixei-lhe colados ao útero a placenta e demais excrescências. Ao contrário de mim, pareciam não querer que as desalojassem.
A minha avó sentiu relutância em incomodar o médico a horas tão impróprias, expondo a filha ao perigo de uma infecção letal. Nos anos seguintes demonstraria ser uma velha megera.
Ainda antes de abrir os olhos comecei a balouçar violentamente o meu enorme crânio de recém-nascida. Fazia-o da direita para a esquerda e da esquerda para a direita, tão afincadamente que em menos de nada lhe tomei o gosto. Ainda hoje esses movimentos, são a minha marca registada, sobretudo à hora de me deitar. A minha irmã, que era uma criança com pretensões a inteligente, costumava ficar junto ao meu berço, mirando-me estonteada.
Meu pai sempre distante sonhava com filhos machos. Coerente com os seus desejos, não me visitou durante meses. Mais tarde encantar-se-ia, efemeramente, com o azul dos meus olhos e com a alvura da minha pele. O despotismo acabaria por derrotar o encantamento.
Passada a fase oral, como diria o Dr.Freud, seguiram-se peripécias várias. Evoco o episódio da ingestão de insecticida, quando a minha mãe teve de me arrastar em estado quase mortal até às urgências do hospital mais próximo. Aí fui submetida à inevitável lavagem ao estômago. Situações semelhantes suceder-se-iam com vidros, agulhas, baloiços e muitos outros objectos de risco.
Ainda minúscula, eu fugia de casa vezes sem conta. Desesperava parte da família e dos serviçais com os meus frequentes e prolongados sumiços. Agarrava na muito amada malinha azul e deambulava pelas casas das vizinhas e pelos jardins. Quando lograva surripiar uns trocos à minha mãe, enchia-me de guloseimas no mini-mercado S.João de Deus.
Também me divertia a provocar as empregadas, inspeccionava-lhes as carteiras, espreitava-lhes a correspondência. Uma delas, a Ema que tinha o namorado na guerra do Ultramar e lhe enviava aerogramas picantes, tornou-se a certa altura o objecto preferido das partidas. Quando me cheirava a aerograma novo, reunia as minhas vizinhas e fazia leituras públicas dos desabafos eróticos do soldado apaixonado. Outra vítima era o meu tio paterno que montara escritório em nossa casa. Ele tinha um affaire com a secretária, daí que eu não perdesse uma oportunidade de esconder-me atrás de um arquivador. Não só perturbava o romance, como também ia chantageando o meu tio, que só a troco de algum dinheiro conseguia a minha retirada.
Enquanto isso meu libidinoso progenitor, ignorando as escapadelas, veladas pela esposa, da benjamim, ia apalpando as criadas em casa e no estabelecimento comercial as empregadas. Minha mãe refugiava-se no mundo do consumo e da religião. Adquiria roupas que não vestia, jóias, cristais e porcelanas que não usava, alimentos de todo o tipo que devorava, frequentando missas, confessionários, sacristias, conventos, cursos de cristandade, vigílias carismáticas, proporcionando lautos jantares a abades e abadessas. Pais deste calibre justificam todo o meu sinuoso percurso.
E o que dizer da escola .... Os primeiros anos passaram desleixados mas sem reprovações. O ingresso no então curso geral revelou-se fatídico, duas chumbadelas seguidas resultaram no abandono escolar, em parte por imposição paterna.
Eu era uma rapariga enfezada, magra e pequena, uma típica maria-rapaz. Lembro-me da menarca me ter aparecido já feitos os quinze anos, quando já tinha desistido de esperar por ela. O meu programa, ao tempo, resumia-se a dar largas à minha hiperactividade, fugir, saltar, brincar, correr, consumir compulsivamente, desesperar a família, mudar de roupa três vezes por dia, e finalmente namorar. Também adorava e adoro mentir, criar situações fictícias, iludir e iludir-me. Abandonei a escola mas sou brilhante no estilo epistolar, uma exímia narradora e actriz, daí escrever estas confidências.
As minhas paixões eram intensas, desastrosas e efémeras. Em casa, minha mãe já não conseguia proteger-me e ocultar o meu comportamento libertino, as crises avolumavam-se em função da moleza dela e da índole autoritária e agressiva de meu pai.
No dia em que fiz dezoito anos, fugi mais uma vez de casa com o dinheiro acumulado ao longo de meses, conseguido à custa de furtos sucessivos à mãe e ao negócio do pai.... Recordo, ainda, entre outras situações semelhantes, a figura tonta da mãe que quase me partiu de pancada em busca de um dinheiro misteriosamente desaparecido, que eu sabia ciosamente escondido debaixo do colchão de um dos muitos quartos vazios perdido num dos compridos corredores da casa. Revejo deliciada minha irmã, criatura com pretensões a justiceira e pacifista, crédula e indignada implorando tréguas...
Como eu adorava provocar a minha irmã e desempenhar depois o papel de vítima da ira dela e fazer com que ela fosse repreendida e punida pelo furor da autoridade materna.
Não deixei bilhete de despedida à mãe, simplesmente desapareci, segui no comboio rumo a Lisboa, feliz pela excitante partida. Vivi intensa e lautamente os prazeres da capital. Foram tantas as solicitações, que ao cabo de três meses, esgotados os recursos tão laboriosamente angariados, me vi forçada a recorrer à minha generosa mãe implorando-lhe apoio psico-económico. Instalada num óptimo hotel, inspirada, criei o quadro mais negro e comovedor dos meus últimos dias longe da sua protecção.
A alegria imensa e patética de minha mãe imediatamente me proveu com os bens tão ansiados. Pelo meu lado, fiz promessas mil de retomar aplicadamente os estudos. Continuei a viver lauta e despreocupadamente, financiada pela ingenuidade materna. Iniciei então uma longa digressão por internatos, externatos, institutos de línguas e turismo, colégios e cursos vários nas principais cidades do país.
Uma vez, foi de repente num Sábado, quis visitar a Madeira para ir ao encontro da paixão do momento. Fui tentar comprar bilhete no aeroporto pois queria partir logo. Informaram-me que os aviões estavam lotados até ao fim de semana seguinte. Vi-me forçada a representar o papel de uma pobre estudante desesperada, cujo pai doente terminal a aguardava para poder dar o último suspiro. A minha actuação foi tão convincente que me ofereceram o jantar, conseguiram arranjar-me bilhete para viajar no dia seguinte e pagaram-me a estadia num hotel de Sábado para Domingo.
Numa das suas estadias em Lisboa minha mãe levou-me a um centro de psicologia clínica, o Psicopromotor. Após muitos testes, questionários e entrevistas à mãe e à filha, fizeram a grande revelação confidencial, todos os indícios conduziam a um único e possível diagnóstico a filha só podia ser psicopata. Consultei o dicionário e fiquei a saber que psicopata é aquele que sofre de doença mental e tem um comportamento desajustado em relação à sociedade. No meu caso acrescia, segundo li subrepticiamente no relatório, ter a idade mental de nove anos e a predisposição para responsabilizar os outros pelos meus desaires.
Depois de vinte anos de casados, os meus neuróticos pais divorciaram-se, a separação constituiu um desaire económico para mim ao constatar a perda da fonte mais abundante de fomento das minhas múltiplas necessidades.
Entretanto numa noite de Verão minha irmã sofreu um acidente. Convencera-a a sair comigo sem permissão da mãe. Ela acabou por ceder, contrariada saltou comigo a janela, jantamos num afamado restaurante. Caminhávamos em direcção ao Regalenga, quando eu tropecei nela fazendo-a saltar do passeio, no mesmo instante passou célere um carro que a colheu e atropelou deixando-a sem sentidos. Conduzida para o Hospital Distrital de Évora faleceu ao fim de um mês em coma.
Às repreensões e lágrimas amargas da mater dolorosa seguiram-se a autópsia, a interminável vigília — afinal tão proveitosa para mim do ponto de vista económico, dado o estado lastimoso de minha mãe e o seu desprendimento do mundo material — o funeral e o processo contra o condutor bêbado, absolvido em virtude das declarações que prestei em tribunal enquanto testemunha principal do acidente.
Correram os dias, diminuíram as mágoas. Retomei os velhos hábitos, vivia fugindo, perseguindo paixões, voltando/revoltando para junto da minha sempre prestável mãe. Mandava-lhe as contas das incontáveis compras que fazia ou usava os cheques dela com a assinatura falsificada por mim.
De um dos meus muitos romances resultou surpreendentemente, pois julgava-me estéril, uma criança. Durante os meses de gestação comportei-me de modo invulgar, permaneci grande parte do tempo em casa, segui uma dieta equilibrada, não fumei nem bebi. Merecia uma compensação. A hora do parto chegou de rompante, saía da casa de banho quando senti um líquido quente a escorrer e um objecto estranho entre as pernas. Inspeccionei, era a cabeça do rebento e entretanto nasceu o resto do corpo. Fui de ambulância para a Climor já com a criança sobre a barriga com o cordão umbilical ainda por cortar. Todos se espantaram com tamanha facilidade. O bebé foi imediatamente encaminhado com a ajuda da comunidade freirática para a adopção ilegal, mas muito mais eficaz. Minha mãe junto de quem me refugiei não aceitava o aborto. Aqui dou lugar à pergunta que todos estarão a fazer: Por onde andará essa criança? Não tardará o dia em que estarei num programa de televisão chorando pela sua presença e carinho.
Em Montemor-o-Novo, pois embora nascida no monte passei a infância e adolescência nesta cidade, era conhecida por despenteada mental, apreciada por aqueles a quem nos momentos de fulgor económico proporcionava ofertas e festas e vituperada pelos amantes da moral pública e dos bons costumes. Apontada como exemplo de hedonista por uns e imoral por outros. Após a morte de minha mãe, acontecimento associado ao meu descalabro financeiro os dois grupos uniram-se quanto ao modo de me tratarem.
Desprovida de fundos procurei apoio junto de alguns familiares, indiferentes não se comoveram nem tão pouco atenderam os meus insistentes pedidos. Um episódio ocorrido com uma sobrinha que se deslocara a Lisboa para passar um fim de semana comigo motivou a indignação da família contra mim. Em passeio à Feira da Ladra pedi-lhe que entrasse no autocarro sem pagar bilhete, assegurei-lhe ser uma prática corrente em Lisboa e quase sem risco. A campónia recusou e preferiu combinar encontrar-se comigo na Praça do Comércio uma hora depois. Entretanto, eu deparei com alguém que não via há muito tempo e, naturalmente, esqueci-me do encontro na Praça do Comércio. A minha sobrinha esperou até ficar em pânico. Em vez de se dirigir de imediato para minha casa, lembrou-se de ir ao Posto de Turismo dizendo que estava perdida em Lisboa e precisava de ligar para um familiar. Perante, tamanha atrapalhação, a funcionária permitiu que fizesse uma comunicação gratuita para o meu telemóvel. Quando cheguei ao Posto de Turismo senti-me vexada com a atitude pouco adequada da rapariga. Para cúmulo ela foi logo relatar o acontecimento a toda a família antes de eu ter conseguido obter qualquer tipo de apoio.
Sózinha, forçada a trabalhar optei pela hotelaria, área na qual iniciara um curso que nunca terminei por motivos alheios à minha vontade, doenças, inimizades e que me proporcionaria a oportunidade de alimentar-me de borla, conhecer mais gente, estabelecer contactos, mudar de estatuto e quiçá viajar. Quase cheguei a gerente de um restaurante algarvio de elite, mas as muitas intrigas forjadas pelos outros empregados inviabilizaram tal promoção. Devo confessar que ao longo da minha peregrinação por restaurantes, hotéis e bares no continente e nas ilhas, só me tenho deparado com enredos e gente mesquinha que me dificultava a vida e me impedia de atingir os meus objectivos e realizar os meus sonhos. Foram muitas as desilusões, destruíram o meu projecto de construir uma carreira brilhante no ramo hoteleiro. Tornava-se urgente alterar uma situação insustentável. Iniciei uma nova fase e adoptei outro estilo, mais pós-moderno de vida. Vivo de biscates, empregos de ocasião, pequenos golpes. Aproveito todo o tipo de promoções e concursos.
Montemor-o-Novo Julho 2001
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