1.2. Arquivo de Bernardo Rodrigues Barata

Deambulações de Um Pintor e de um seu Admirador


Nasceu em Amarante, no ano de 1872, de mãe pobre e pai ausente no Brasil à data do parto. Morta a mãe, sete anos depois, foi confiado ao asilo da Misericórdia do Porto.
Apesar de tão nefastas circunstâncias, não desenvolveu sentimentos de revolta. Cresceu dado a estados de melancolia, à contemplação solitária e ao misticismo.
O motivo da ausência de raiva e de indignação deveu-se ao seu modo de ser e de viver, mais entre o sonho do que entre a realidade. Os seus meios de evasão eram os instrumentos do desenho e da pintura. Com eles transfigurava a realidade e era transportado para universos oníricos plenos de simbolismo.
Num dia chuvoso, uma personagem influente viu António na rua, sentado no chão, tentando reproduzir com um vulgar lápis, uma cena da vida portuense que o seduzira. O ilustre observador apreciou a singularidade do traço e a leveza do estilo e, arrebatado pela precocidade do rapaz, ofereceu-lhe material de pintura. Mais tarde iria mesmo financiar o seu ingresso na Academia de Belas Artes e algumas das suas deslocações ao estrangeiro. A partir daí, todos os devaneios e peregrinações de António tornaram-se imagens pictóricas.
António saía de manhã do orfanato para visitar as igrejas. Encantava-se com as rosáceas irisadas e com o dourado da talha dos altares barrocos. Subia pelas espirais ajudado pelos anjos e atravessava turbilhões até desembarcar num mundo evanescente de elevação espiritual.
No Verão, ao crepúsculo, comovia-se vendo os pássaros a rodopiar à volta das árvores e dos telhados, entrando e saindo num ritual solar até pousarem definitivamente nos ninhos.
À noite, deambulava pelos jardins da Misericórdia contemplando o céu azul da Prússia profundo, as estrelas e a lua brancas, ou as cores carregadas violáceas e o cheiro a terra das tempestades. O seu destino preferido era o lago por ele transmutado na tela. Criou a partir dele um nocturno onírico inspirado nos verdes profundos da água e da densa vegetação à volta do lago.
Quando ia para o campo em passeatas organizadas pelo asilo isolava-se, principalmente quando iam fazer piqueniques junto ao rio. Por vezes, ainda com um pedaço de pão com doce de amora na mão, sentia o apelo dos campos alagados de verde. Vinculava-se ao marulhar estrondoso das águas descendo as fragas, ao tilintar dos seixos, escutava a sua música. Ao desafio feito pela torrente respondia intuitivamente numa transferência de dados de um elo para outro da mesma cadeia natural. Pressentia nele infuso uma afinidade intrínseca com a água, o azul, o verde e a névoa. Procurava essa ligação inefável com a natureza, empenhando-se em recolher as ténues manifestações desse liame com uma obstinação próxima da loucura.
Imerso nas suas meditações, era forçado a sair do seu estado de contemplação devido ao ruído emitido pelos outros jovens cujas vozes estridentes e jogos barulhentos lhe arranhavam os tímpanos.
No final da sua formação académica, empreendeu uma longa viagem, viajou na verdade, para Paris. Cidade que representou a novidade polifacetada capaz de satisfazer a sua sensibilidade. As manifestações do impressionismo, do pós-impressionismo e do simbolismo multiplicavam-se. Mas desde logo se reviu nas composições hieráticas, esfumadas e delicadas de Puvis de Chavannes, pintor da corrente simbolista. Adoptou o ideário do simbolismo preferindo pintar temas evocativos de situações existenciais.
No Verão seguinte percorreu a Itália, onde recuou no tempo, regressando a um passado histórico que sentia ser o seu, a época dos grandes mestres da Renascença. Viveu momentos de afinidade e diálogo com Giotto, Piero della Francesca, Fra Angelico, Perugino e Leonardo. A observação dos frescos dos artistas por ele tão admirados, fundamentou mais profundamente a busca de simplicidade e de sobriedade que sempre o norteou. Desde cedo o pintor evitou os pormenores supérfluos, o “armar ao efeito,” como ele dizia. Em Itália descobriu-se na sua interioridade. Encontrou o clima místico, o silêncio, a solidão monástica e o recolhimento espiritual que sempre procurara e o acompanharam até ao fim.
António desenvolveu a sua concepção própria de arte. Elaborou teorias de aproximação entre os estados de êxtase na mística e os estados de inspiração e produtividade artística.
Em seu entender, os períodos de criatividade e de plenitude aliados aos momentos de vazio resultariam da acção de uma força simultaneamente interior e exterior, imanente e transcendente à vontade do sujeito, que ao projectar-se no místico ou no artista os impulsionasse à criação e à elevação espiritual ou pelo contrário os abatesse. Tanto numa como noutra fase, quer o místico quer o artista seriam submersos. O místico acederia à contemplação da sua própria essência e à fusão com a realidade; o artista procuraria libertar-se da imediatez das sensações e mostrar as essências para lá da aparência.
A visão simbólica actuaria como mediadora, possibilitaria a comunhão pois de outro modo a mensagem artística ou mística seria intransmissível.
- Existe uma zona inefável, indizível, mas o simbolismo conduz a uma aproximação, o símbolo funcionaria como um elemento unificador do aqui no além. A arte não é um mero jogo, não a visiono como arte pela arte! – explicava ao seu amigo Teixeira de Pascoaes, em casa do poeta na serra do Marão.
- A arte constitui uma expressão do ser, um testemunho de eternidade. A criação artística não é prometaica, é antes participação no divino. A criação prometaica tem o seu espaço bem demarcado, ao nível da ciência e da técnica. – rematou convicto.
Ao que Pascoaes acrescentava em total consonância:
— A ciência percebe mudanças duma substância permanente; mas a poesia participa da própria substância e atinge, por isso a Beleza oculta nas coisas belas. A ciência vê e conceitua; a poesia visiona e concebe . – E prosseguia entusiasmado — O olhar imbuído da emoção poética dá lugar à presentação do real, constituindo a única via de vencer a resistência da realidade material e compreender a origem espiritual da matéria. “A actividade científica desenha a onda e é à poesia que cabe a tarefa de a encher de água” A essência das coisas, é de natureza poética e não científica. Aprende-se de modo intuitivo, não, através da fria razão.
As pequenas digressões até Amarante, bem assim como as visitas a Pascoaes e as conversas com o amigo no canto do lume, ao ritmo da crepitação das labaredas e do som das gotas de chuva a cair nas pedras do pátio, davam-lhe maior felicidade do que as grandes viagens. No entanto, também rumou ao Brasil, símbolo do futuro. Terra cujos vastos espaços foram registados em impressões picturais de uma grande fluidez e leveza As aguarelas dessa fase revelam maior espontaneidade e libertação criativa, são por vezes de uma indefinição que ronda a abstracção
Apresentar, evocar com subtileza e suspender os seres no tempo, objectivos que António plasmou no tríptico A Vida ou Esperança, Amor e Saudade: A nudez, cavalgada na floresta, a esfinge junto à água atrás da mulher de negro e de uma criança. Morte e renovação, o eterno ciclo da vida, o eterno retorno ....
Reclinado na otomana junto da varanda aberta, embalado pela aragem cálida do estio e pelas últimas luzes do crepúsculo, dormitei lendo um livro sobre o pintor António Carneiro. Vadiei, viajando dentro da mente. E entre o sonho e a realidade fantasiei episódios da vida e pensamentos do artista amarantino.

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