2.2.?.2. Os Espelhos de Narciso (cont.)

A água é um dos símbolos de mais rica significação, é o símbolo das energias inconscientes, das potências informes da alma e das suas motivações secretas.
As águas fonte de vida, meio de purificação e centro de regeneração, simbolizam a soma universal das potencialidades, elas são “fons et origo,” os reservatórios de todas as possibilidades da existência. Mergulhar nas águas para ressurgir depois significa receber uma força nova. A imersão na água é uma fase transitória de desintegração preparatória antecedendo um estádio de regeneração. O homem velho morre pela imersão na água, mas esta dissolução não teria sentido se não fosse seguida de um renascimento.
Narciso renasce na flor, símbolo de vida e de unificação. A flor representa o arquétipo da alma, de um centro espiritual. Neste caso trata-se de uma flor amarela o que aponta para um simbolismo solar.

Transpondo a análise do mito para uma dissecação do fenómeno cultura poderemos servir-nos dos mesmos parâmetros: A cultura será apenas um verniz, um meio de aturdimento do homem, de cristalização, um espelho da sua vaidade, o reflexo de uma situação absurda, ou representará uma necessária descida aos infernos, um processo de auto-conhecimento e de revelação do humano?*
Marcuse distinguiu dentro da cultura, por um lado o herói arquétipo Prometeu, e, por outro, Orfeu e Narciso, considerando-os representantes de concepções diferentes de perceber a realidade e de a vivenciar: “Se Prometeu é o herói cultural do esforço laborioso, da produtividade e do progresso através da repressão, então os símbolos do outro princípio da realidade devem ser procurados no pólo oposto: Orfeu e Narciso.(…)Estes recusam o mundo unidimensional de Prometeu, por uma nova ordem: As imagens de Orfeu e Narciso reconciliam Eros e Thanatos. Relembram a experiência do mundo que não vai ser dominado e controlado mas libertado.(…)A experiência órfica e narcisista do mundo nega aquilo que sustenta o mundo do princípio de desempenho. A oposição entre homem e natureza, sujeito e objecto é superada.” (Marcuse, op.cit. pp.148, 150 e 151). Prometeu revolta-se e introduz a instabilidade, Narciso contempla, interioriza, integra-se no todo.
Assim, Narciso foge de Echo enquanto símbolo de regressão, de um estado passageiro anterior à transformação. O mito remete para uma via estética, contemplativa e transcultural, na medida em que expressa uma atitude radical de recusa da mera manipulação das coisas, do rotular das mesmas. Representa aquele que desejando compreender o mundo e compreender-se a si mesmo, não se satisfaz com uma modalidade de conhecimento que consiste apenas em nomear os seres e usá-los.
“As imagens órfico-narcisistas(…) No máximo são poéticas, algo para a alma e o coração. Mas, não ensinam qualquer «mensagem» — excepto, talvez, uma de natureza negativa: que ninguém pode vencer a morte e rejeitar o apelo da vida na admiração da Beleza. (Marcuse, op.cit., p.155).

*Vem a propósito o poema de Miguel Torga, O Narciso:

O desenho impreciso
De cada rosto humano, reflectido!
Mas, o velho Narciso
Continua fiel e debruçado
Sobre o ribeiro…
Porque há-de ver-se inteiro
Quem todo se deseja revelado?

Devorador da vida lhe chamaram,
A ele, artista, sábio e pensador,
Que denodadamente se procura!

À movediça e trágica tortura
De velar dia e noite a líquida corrente
Que dilui a verdade, Quiseram-lhe juntar a permanente
Ironia
Desse labéu de pérfida maldade
Que turva mais ainda a imagem fugidia…

(Cântico do Homem, Coimbra, 1974, pp.78-79)


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