2.2.?. Os Espelhos de Narciso (cont.)

OS ESPELHOS DE NARCISO (Continuação)

A descoberta do eu é portadora de angústia. A consciência de si revela a complexidade do eu, desvenda um ser feito de luz e de sombra. Narciso inicia a sua descida aos infernos, às dimensões telúricas, magmáticas do seu ser. Processo implícito nos versos de Paul Valéry de Fragments du Narcisse:

Vous attendiez, peut-être, un visage sans pleures,
Vous calmes, vous toujours de feuilles et de fleurs,
Et de l’incorruptible altitude hanteés,
O Nymphes !... Mais docile aux pentes enchantées
Qui me firent vers vous d’invencibles chemins
Souffrez ce beau reflect des désordres humains !

O processo de auto-conhecimento requer o recolhimento, o estar solitário. O isolamento, o estar voltado para si e tornar-se objecto de auto-observação irá gerar o desdobramento, a objectivação do eu enquanto observador e coisa observada. Há que ter também em conta o problema da duplicidade do homem perante si próprio e ainda o desdobramento entre o eu consciente que conhece e o eu inconsciente objecto de conhecimento.
As águas serenas e profundas, são o espelho vivo onde se mira Narciso. O espelho, a água-espelho é o instrumento, o meio através do qual se realiza o auto-conhecimento, ele se aproxima de si mesmo. O espelho é o símbolo da revelação da verdade, da sabedoria e do conhecimento. Na tradição budista é considerado um instrumento de iluminação. No entanto, é caracterizado como sendo um símbolo ambivalente, pois enquanto imagem da consciência criadora, liga-se ao simbolismo solar, todavia, como a lua também reflecte a luz solar, o espelho pode ser identificado com ela. Esta ambivalência traduziria as duas vertentes do conhecimento: o nível discursivo e a intuição directa. Traduziria ainda, quer a atitude passiva, quer a atitude activa implícitas no processo de auto-conhecimento, uma vez que este exige uma atitude inicial de recolhimento, de aceitação, mas requer a seguir, acção ou seja o trabalho de conhecer-se.
Narciso poderá correr o risco de se enredar na dimensão ilusória dos reflexos do espelho e daí não sair. Contudo, será através deles que ascenderá a um grau mais perfeito de conhecimento.
A imagem no espelho reflecte o coração do homem na sua nudez. O encontro com a sua verdade pode ser aterrorizante, como muito bem descreveu Mallarmé:
“O Miroir!
Eau froide par l’ennui dans ton cadre gelée(…)
Je m’apparus en toi comme une ombre lointaine,
Mais, horreur !des soirs, dans la sévère fontaine,
J’ai de mon rêve épars connu la nudité !
Mallarmé

O espelho apresenta ainda todo um simbolismo cósmico. Para os soufis, o universo inteiro constitui um conjunto de espelhos nos quais a essência infinita se contempla sob múltiplas formas ou que reflectem em diversos graus a irradiação do Ser Único; os espelhos simbolizam as possibilidades que a Essência tem de se auto-determinar, possibilidade que se deve à sua infinitude. Também lhe atribuem um sentido cosmológico de substâncias receptivas face ao Acto Puro.
Bachelard, em L'Eau et les Rêves, referiu-se igualmente a um “narcisismo cósmico:” a floresta, o céu, mirando-se nas águas em uníssono com Narciso. Nesse sentido ele citou os versos de Gasquet, pois expressam o narcismo cósmico: “Le monde est un immense Narcise en train de se penser.” (Paris, José Corti, 1942, p.36)
Lavelle estabeleceu a seguinte correlacção entre o mundo e a consciência de si: o universo constituiria o espelho onde o eu se revela, seria o mundo, seria através dele que a consciência que cada um tem de si seria possível; correlativamente o eu rever-se-ia nas coisas que conhece: “La conscience que chacun de nous a su prendre de soi, c’est une sorte de projection, le visage même que le monde lui montre(…) Loin de dire que je puis tout connaître à l?exception de moi-même, il faut dire que, dans tout que je peut connaître, je ne connais jamais que moi-même. » (Louis Lavelle, op.cit. pp. 15-16).

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