2.2.?.1. Os Espelhos de Narciso (cont.)

OS ESPELHOS DE NARCISO (Continuação)


Continuamos com a interpretação de Fragments du Narcisse de Paul Valéry.

« La voix des sources change, et me parle du soir;
Un grand calme m'écoute, ou j'écoute l'espoir.
J'entends l'herbe des nuits croître dans l'ombre sainte,
Et la lune perfide élève sons miroir
Jusque dans les secrets de la fontaine éteinte...
Jusque dans les secrets que je crains de savoir, Jusque dans le repli de l'amour de soi-même,
Rien ne peut échapper au silence du soir ... »

Paul Valéry

Cai a noite. A meditação de Narciso concentra-se nos mistérios da natureza iluminada pela lua que se espelha nos segredos da fonte, o enigma da natureza desperta o mistério da alma. À noite da natureza correspondem as trevas interiores, os segredos que escapam à análise interior, à objectivação:

« Bientôt va frissonner le désordre des ombres!
L'arbre aveugle vers l'arbre étend ses membres sombres,
Et cherche affreusement l'arbre qui disparaît...
Mon âme ainsi se perd dans sa propre forêt,
Où la puissance échappe à ses formes suprêmes…
L’âme, l’âme aux yeux noirs, touche aux ténèbres mêmes,
Elle se fait immense et ne rencontre rien…
Entre la mort et soi, quels regards est le sien ! »

Paul Valéry

A noite representa o tempo da gestação, das germinações que eclodirão em manifestações de vida. Ela contem todas as virtualidades da existência. A noite simboliza também a libertação do inconsciente. Narciso entrou na noite, o que significa dizer que mergulhou no indeterminado, onde tudo se confunde. Mas, das trevas surgirá a luz.
A lua tal como a noite é também símbolo do onírico, do inconsciente. É na correlação entre a lua e o sol que se compreende o simbolismo daquela, a lua não tem luz própria, pois reflecte a luz do sol. Outra característica fundamental no plano simbólico, concerne à sua mudança cíclica de forma, as fases. Deste modo representa, por um lado, a dependência, por outro, a renovação e o crescimento. Assim sendo, a lua é passiva e criadora. Símbolo da fecundidade é identificada com as águas primordiais, é o receptáculo dos germes do renascimento periódico ao nível cósmico, terreno e humano.
A investigação de si mesmo, a descida ao escrínio da alma, levam Narciso a um estado de inquietude, a auto-contemplação passa por uma fase de insatisfação, de dúvida quanto à sua unidade e quanto à possibilidade de se conhecer. O corpo parece-lhe um entrave, um obstáculo entre o ser e a sua essência eterna

« Te voi ici, mon doux corps de lune et de rosée
O forme obéissante à mes voeux opposée!
(…) O mon corps, mon cher corps temple qui me sépares de ma divinité… »
Paul Valéry

A busca de si é causa de alegria e de angústia, pois o eu mais profundo é fugidio:

“(…)J’y trouve un tel trésor d’impuissance et d’orgueil(…)
Comme tu fais sur l’onde, inépuisable Moi ! »
Paul Valéry

Narciso surpreende na sua imagem traços fugidios dos seus sentimentos, contudo é em vão que ele tenta apreender essa imagem. No momento em que se vai unir ao duplo, o choque com a água desvanece a imagem:

« Hélas! corps misérable, il est temps de s'unir... Penche-toi... Baise-toi. Tremble de tout ton être! L'insaisissable amour que tu me vins promettre
Passe, et dans un frisson, brise Narcisse, et fuit ... »

Paul Valéry


Na versão de Ovídio (tradução de António Feliciano de Castilho, in Cartas de Echo e Narciso, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1843, pp.226 e 228):

“Eis que ferventes lágrimas perturbarão
Do lago o espelho, e em círculos desfeita,
A formosa visão lhe vai fugindo(…)
O mísero sumio, cerrando a morte
Olhos não fartos de gozar seu dono,
E inda o-forão remirar na Estige(…)
Quando, em lugar do corpo, achão no sítio
Uma flor, croceo o meio, as folhas brancas.”

Neste epílogo reside o ponto fulcral da peregrinação interior de Narciso. É da dissolução momentânea nas águas que Narciso renascerá.

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