2.3.9. Da Cor e da Luz na Pintura

A Harmonia da Cor na obra Do Espiritual na Arte

Partindo de um aspecto clássico, Kandinsky considera as cores isoladamente, ele julga-as em relação às suas modalidades: quente-frio, claro-escuro. Determina assim, quatro grandes contrastes, formados pelas seis cores fundamentais enquadradas pelo negro e o branco, que têm em pintura o estatuto das pausas, do silêncio na música.
O primeiro grande contraste, o maior é o do azul e do amarelo. (A título de exemplo lembre-se Vermeer. O pintor de Delft incorporava sempre na sua cor o turquesa e o pérola, no sol, na água, nos velhos muros).
Kandinsky, ao estabelecer como primeiro grande contraste o azul e o amarelo, difere radicalmente da posição proposta por Goethe.

Em "A Teoria das Cores", obra que o pintor russo conhecia profundamente, Goethe considera o contraste do vermelho e do verde como sendo o fundamental. Para Kandinsky, o que importa é a visão interior, e esta não parte do contraste entre o verde e o vermelho que repousa (sobre) uma análise científica da cor.
Neste estudo, o autor faz referências à música, e à musicalidade da cor, aliás Kandinsky creditava a possbilidade de uma síntese das artes. É interessante, notar que Delacroix, Gaugin e Matisse também insistiram na musicalidade da cor.
Kandinsky atribui uma outra dimensão à superfície pictórica introduzindo as noções de próximo, o amarelo e distante, o azul. A forma e a cor harmonizam-se para criar o quadro segundo o princípio da necessidade interior.

Segue-se agora ,a análise propriamente dita da cor em si mesma, do seu o do de ser, da sua acção e do seu significado, seguindo a perspectiva de Kandinsky.
Do ponto de vista estritamente físico, o olho sente a cor. Ele experimenta as suas propriedades, é atraído pela sua beleza. O olho recebe uma excitação semelhante à acção que tem sobre o paladar uma iguaria bem temperada.
A impressão "física" da cor como toda a sensação, é de curta duração e superficial. Desde que o olho não vê a cor, a acção física da pasta colorida cessa. Mas essa impressão superficial, quando penetra profundamente desencadeia toda uma série, uma cadeia de acontecimentos psíquicos.

À medida que o homem se desenvolve e completa, o círculo de propriedades, que ele aprende a reconhecer nos seres e nas coisas, cresce, assumindo então, os seres e as coisas, uma significação que se resume finalmente em ressonância interior.

A cor agindo sobre uma sensibilidade grosseira apenas provoca efeitos superficiais e desaparecendo a excitação esses efeitos dissipam-se. Todavia, por mais elementares que sejam, esses efeitos são variados e deixam sempre um "rasto", um "resíduo" na psique do percepcionante.

As cores claras atraem com maior intensidade o olhar e retêm-no. As cores claras e quentes retêm-no ainda mais intensamente, como a chama atrai irresistivelmente o homem. O vermelhão atrai e irrita o olhar. O Amarelo limão vivo, fere os olhos. O "olho" não o pode prender. Viríamos que se tratado ouvido "déchirée", di1acerado, pelo som agudo ao trompete. O olhar acalma-se e vai mergulhar nas serenas profundezas do Azul e do Verde.
A cor provoca uma acção psíquica. Estando a alma estreitamente ligada ao corpo, uma emoção qualquer pode sempre, por associação, provocar outra que lhe corresponde. O vermelho, porque a chama é vermelha pode desencadear uma
vibração interior semelhante à da chama. O vermelho quente tem uma acção excitante mas também, como já se referiu ao longo do trabalho, pode provocar uma impressão dolorosa, pode exercer sobre a alma uma acção penosa.
A visão tem uma relação intima com todos os sentidos, como se comprova pela experiência. Há cores que parecem rugosas e ferem o olhar. Outras dão uma impressão de veludez, parecem macias. Umas cores parecem doces, cremosas, outras duras e secas. Tudo isto está relacionado com a diferença entre os tons quentes e os tons frios são estas sensações que produzem a referida diferença.

Não nos podemos satisfazer com a teoria da associação para explicar a acção que a cor exerce sobre a alma, diz Kandinsky. "É evidente, que a harmonia das cores apenas deve assentar sobre o princípio do contacto eficaz. A alma humana, tocada no seu ponto mais sensível, responde". "
Kandinsky denomina esta "base" de "Principio da Necessidade Interior". Concentrando-nos apenas na cor considerada isoladamente, apercebemo-nos de duas grandes divisões fundamentais: primeiramente o tom quente e o tom frio e em segundo lugar o claro e o escuro. Entendendo-se por fria ou quente a tendência geral da cor relativamente ao azul ao amarelo.
O tom quente tem tendência para se aproximar do espectador enquanto que o tom frio se afasta. Estas duas cores, amarelo e azul constituem o primeiro grande contaste. A tendência da cor relativamente ao frio e ao quente é de uma extrema importância interior e tem uma significação considerável. O segundo movimento do azul e do amarelo é o movimento de concentricidade e excentricidade. O azul tem um movimento concêntrico enquanto que o Amarelo é"excêntrico", aproxima-se do percepcionante. O azul dirige-se para o seu próprio centro. O Amarelo expande-se.
Outro grande contraste, o branco e o negro, ou seja o claro e o escuro, anima-o o mesmo movimento de proximidade (claro) e de distância (escuro) mas num plano estático e não dinâmico como acontecia quanto ao contraste anterior. Existe uma afinidade profunda e física entre o amarelo e o branco, e o azul e o negro, segundo Kandinsky, porque o azul pode atingir uma profundidade que desemboca no negro.
Kandinsky, em sintonia com a astrologia chinesa, considera o Amarelo como sendo uma
cor tipicamente terrestre, pois o amarelo ao contrário do azul, não tem profundidade. Ligeiramente misturado com o azul adquire um tom "maldito", próximo dos estados de alma delirantes, furiosos. Representa um louco atirando tudo ao chão, dispersando as suas forças, dissipando-as sem razão e sem objectivo até ao esgotamento, ou um homem transbordando de energia e ambição e que as circunstâncias exteriores paralisam. O amarelo tem um movimento oposto à têmpera do azul. Mas, se continuarmos a juntar azul, os dois movimentos antagonistas anulam-se produzindo-se então o repouso absoluto e surge então o verde.
O azul profundo atrai o homem para o infinito, desperta nele o desejo da pureza, de eternidade. É a cor tipicamente celeste. Acalma e apazigua mas de um modo diferente do verde, o verde dá uma impressão de repouso terrestre, contentamento de si. O azul ultrapassa essa dimensão "terrestre", transcendendo todos os tormentos, as angústias e contradições terrenas. O azul e a cor celestial e na arte bizantina os nichos eram azul céu para os personagens dotados de uma existência puramente espiritual.
O azul escuro, reveste-se de uma tristeza que ultrapassa o humano, semelhante àquela tristeza que sente quem mergulhou em certos estados graves que não têm fim porque o não podem ter. (Os persas, na sua cerâmica, representavam a morte através do azul escuro).
O verde, é o ponto ideal de equilíbrio entre o azul e o amarelo. Todos os movimentos se anulam , tudo repousa. A acção directa da cor sobre a visão e no espírito conduz ao mesmo estado de repouso. Mas, o verde absoluto pode conduzir ao tédio, pois a passividade e a característica dominante no verde absoluto. Enquanto que do amarelo, se desprende um certo calor espiritual e de uma tela pintada de azul se tem uma impressão de frio efeito activo pois o homem foi criado, como elemento do universo, para o movimento constante e ate eterno), do verde apenas se desprende um sentimento de tédio, sendo este efeito passivo, de "tranquilidade" excessiva, "perfumado" com um certo "contentamento de si próprio", um certo "estar cheio de si". Kandinsky compara o verde à Burguesia ou seja um elemento imóvel, sem desejos, satisfeito. É o equilíbrio ideal. Este verde absoluto, e como a vaca gorda e sã, deitada sobre a erva, ruminante, olhando o mundo com os olhos indolentes. O verde e também, a cor do verão, quando a natureza se banha num repousante contentamento, orgulho de si após ter vencido as tempestades. Analógica mente o verde absoluto, evoca os sons amplos e calmos, de gravidade media, do violão. O verde "amarelado", anima-se torna-se alegre enquanto que aproximando-se do azul denota gradualmente, "gravidade".
O branco, que os impressionistas não consideram como cor, e o símbolo onde todas as cores, enquanto propriedades materiais, digo de substâncias materiais, se desvaneceram. O. branco aje na nossa alma como o silêncio absoluto. Todavia, este silêncio não e o aniquilamento, está pleno de possibilidades vivas. É um "nada" no dizer de Kandinsky, cheio de juvenil alegria, um nada, antes de todo o nascimento, antes de todo o começo. Esta concepção do signifcado "espiritual" do branco, remete-nos óbviamente, para todos os exemplos mencionados na primeira parte deste estudo acerca do valor simbólico desta cor em algumas tradições. Assim, Kandinsky, aproxima-se de certo modo da simbologia tradicional a qual considera o branco a cor imaculada, da pureza, dos "iniciados", daqueles que após a purificação (após a "pausa") encetam uma nova vida. Contrariamente, o negro e caracterizado como um"nada" sem possibilidades, um nada após a morte, depois da morte do sol, sem esperança sequer de futuro.
Na música, o negro corresponde à pausa final, àquela que marca o fim total, ao qual só pode seguir o nascimento de um outro mundo. O negro é um círculo fechado, sendo exteriormente a cor mais desprovida de ressonância. Sobre o negro todas as outras cores, nomeadamente o vermelhão e o amarelo, saltam à vista, enquanto no branco perdem um pouco da sua força. Não e sem razão, afirma o autor, que o branco representa a pureza e a alegria sem limites e o negro o luto, a aflição profunda, a morte.
"Da junção do negro e do branco resulta o cinzento esta, tonalidade não tem ressonância e dá uma ideia de imobilidade, todavia diversa daquela causada pelo verde pois esta cor deriva da associação de duas cores activas. O cinzento simboliza a imobilidade sem esperança. À medida que escurece desperta uma sensação sufocante, tornando-se quanto mais escura mais ameaçadora. O cinzento quanto mais claro, mais leve se torna (a tonalidade de cinzento, originada a partir da mistura óptica do verde e do vermelho, representa a junção espiritual da passividade e da actividade devorada pelo ardor. Delacroix pretendia obter a impressão de repouso pela associação do verde e do vermelho).
A pintura de Greco ilustra algumas das afirmações anteriores. Greco instalou-se em Toledo cidade sombria, toda feita de granito. A sua pintura respira e vive da sua alma mística e melancólica em que o menor vestígio de sensualismo e purificado mediante uma rigorosa. Essas características de ascetismo, religiosidade e desprezo pela materialidade, são transmitidas pela abundância de cinzentos e negros, com reflexos verdes e azulados, sinais de esperança e desejo de infinitude. Os carmins e os amarelos também aparecem, todavia a título de ornamentação e como meio de atrair a atenção para o centro do quadro.
No "Enterro do Conde de Orgaz" é flagrante (principalmente em função do tema) essa gradação de cinzentos, de negros, um "círculo fechado", em que os vermelhos e os dourados dos paramentos do bispo, e o próprio dourado mais sombrio das roupas do conde, parecem pairar no ar, despertam uma sensação de estranheza, contudo, no plano superior abre-se um outro horizonte, dá-se o "nascimento do outro mundo" para a alma do falecido, então surgem os brancos, as "cores" abrem-se.
"Todos sabem que o amarelo, o alaranjado e o vermelho inspiram e representam ideias de alegria, de riqueza, de glória ou amor.” [Delacroix, Diário, Extractos, Lisboa, Editorial Estampa, 1979), p.190]. Esta frase de Delacroix, serve de passagem para a análise do vermelho, ainda segundo a teoria de Kandinsky.

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