O Mito de Fausto (3)
Os Mitos de Fausto
“See, see, where Chris’s blood streams in the firmament!”
Christopher Marlowe, The Tragical History of Faustus, (New York, MacMillan St. Martins Press, 1969), Acto V, cena III, p. 54.
O Homem Fáustico
Na realidade, a paixão que impulsiona o inventor não tem qualquer relação, seja de que ordem for, com as consequências da sua invenção. Esta paixão é a sua razão pessoal de viver, a sua ventura ou desventura pessoal; o inventor quer para si o gozo proporcionado pelo triunfo sobre os provocantes enigmas da Natureza, tal como desja a glória e a riqueza que se lhe seguem. Que a sua descoberta seja útil ou perigosa, fecunda ou destruidora, importa-lhe tanto como coisa alguma. Aliás, ao fim e ao cabo, ninguém pode calcular os resultados, antecipadamente, de uma invenção.
Spengler, op. cit., p. 110
Mitanálise
Apercebemo-nos de que, ao longo da história, há avanços e recuos de um mito. Vemos, por exemplo, que o mito de Prometeu que emergia no Renascimento, desaparece e cede o lugar a outros mitos, pelo menos no contexto francês no fim do séc. XVI e no XVIII, sobretudo, e ressurge no fim do séc. XVIII. (…)
Estes avanços e recuos do mito podem ser medidos, se assim posso dizer, por esta “fisiologia da mitanálise”. Há ainda a deformação do mito: por mutilação dos mitemas (…) ou por acrescento dos mitemas. Por exemplo, vemos o mito de Prometeu transformar-se curiosamente no século XIX, e no fim resultar no mito de Fausto. Fausto é Prometeu sem altruísmo nem generosidade. É um Prometeu que assumiu o egoísmo do romantismo mas que é difícil reconhecer, porque no Fausto há um terceiro elemento fisiológico: aquilo a que chamaria o bloqueio sócio-cultural. Ora o exemplo de Fausto é muito probante.(…) o mitologema de Fausto aparece no século XVI com Marlowe, etc; mas é violentamente rejeitado, quer dizer é moralizado. Fala-se na “danação” de Fausto. Fausto aparece como mau, tem problemas com Margarida, vende a alma ao diabo para possuir a juventude e a ciência, e depois, no fim, evidentemente, sem moral está condenado, está liquidado. Ora, esta condenação de Fausto vai persistir mesmo depois de Goethe, durante todo o século XIX. As óperas populares - não sei se há algumas portuguesas da época – mas em França temos pelo menos dois Faustos: o de Gounod e o de Hector Berlioz. Mais explicitamente, a Danação de Fausto ou ainda o Mefistófeles de Boito, são lições de moral, liquidação de Fausto.
Vamos encontrando, portanto, em cada um dos casos, uma retracção do altruísmo e da generosidade, ou mesmo um bloqueamento. Desde há muito que o mito está para sair, mas pode realmente sair, o que é surpreendente, no século XX. O Fausto perfeito, o Fausto consumado é o Dr. Faustus de Thomas Mann, porque é a realização apocalíptica do mito. Adriano Leverkuhn, é o nome do Dr. Fausto (…) É um músico dodecafónico, personagem que foi inspirada a Thomas Mann pela loucura de Nietzsche, por um lado, bem entendido, mas por outro, também, pela biografia de Schönberg. Assistimos à decadência deste Dr. Fausto, assistimos, mais uma vez por uma criatividade que é promovida pela paralisia geral, uma sensibilidade que se torna paralítica, tal como Nietzsche, no fim, se torna louco e, ao mesmo tempo, produz uma obra assustadora, uma obra petrificante, uma obra no limite do assombro.
Mas, sobre o fundo sociológico de tudo isto, está a derrocada alemã de 1945. Então, poderíamos dizer que a personagem do Dr. Fausto se desmorona com, que assume o desmoronamento do regime nazi. Podemos supor que é nazi e, ao mesmo tempo, assume o desmoronamento criador da sua própria personalidade. O mito de Fausto consuma-se, para o séc. XX, nesta obra de Thomas Mann. Aí, não há danação, há beatificação na doença mental. E é assim que termina, com o exemplo de Nietzsche e com o exemplo de Hölderlin subjacentes, e que inspiraram Thomas Mann.
Gilbert Durand, “A Mitanálise – para uma Mitodologia”, Conferência na Faculdade de Letras de Lisboa em 11/02/1981, in Gilbert Durand, Mito, Símbolo e Mitodologia, (Lisboa, Editorial Presença, 1982), pp.105-107.
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