Da Pintura e dos Pintores

Velazquez

Transcrevo, com ligeiras adaptações, um artigo de que gosto muito de Luiz Marques, Doutor em História de Arte, publicado na revista brasileira, Galeria:



Velásquez

"Vencido de la edade sentí mi espada
y no hallé cosa en qué po­ner los ojos
que no fuese recuerdo de la muerte"

É um convite à fantasia imaginar a convivência entre Velázquez e Que­vedo ou entre o pintor e Góngora, de que resultam retratos famosos, um deles conhecido hoje ape­nas através de cópias de época, mas o outro, o de Góngora, uma terrível obra-prima de "severi­dad", de uma aspereza quase insustentável ao olhar (desde 1931, no Mu­seu de Boston); todavia, nem aqui estamos li­vres de uma contradição, e talvez a mais interessante, entre a pesquisa formal do artista e a forma diversa como a qualificaram os críti­cos da época. E, é justa­mente do convívio com Quevedo que vemos surgir, não apenas um apelo à fantasia, mas, sobretudo, uma primeira interpretação moderna da poética de Velázquez. Esta última evolui, como se sabe, a uma velocidade vertiginosa, desde o pri­meiro período sevilhano e caravaggesco stricto sen­su (1617-1622), que cul­mina justamente no retrato de Góngora, de 1622, passando pelo período "cinza" dos primeiros anos madrilenos, do qual "Olivares" (…)é um dos momentos mais significativos, até a se­gunda viagem à Itália (1649), que abre a última década de sua actividade, o das mais prestigiosas obras-primas: a "Vénus ao Espelho", os retratos de Inocêncio X (ferozmente copiado por Bacon), de Mariana da Áustria, da In­fanta Margarita, do prín­cipe Felipe Próspero, de Feli­pe IV como" condottiero" (ou de seus últimos bustos evanescentes), do "Anão inglês com cão" e, enfim, "Las Meninas", de 1656, e "Las Hilanderas", de 1657, no Prado. Ao longo dessas mutações estilísticas, há talvez uma única cons­tante: a rarefacção pro­gressiva do em pasto, a pincelada mais e mais aé­rea, solta, vaporosa, a dis­solução ameaçadora dos contornos, da trama estru­tura_ do desenho, o esgar­çamento da própria man­cha cromática. "Quando nos avizinhamos de suas últimas telas, escreve As­túrias, que parecem grava­das pelos pesadelos de Felipe IV, face à própria falência na Europa e América, pela miserável desgraça do Conde-Du­que de Olivares, pela re­belião catalã e pela se­paração de Portugal da coroa espanhola, encon­tramo-nos diante apenas de massas larvais, de ful­gurantes alusões, de uma criação mediante a de­composição da matéria em seus reflexos".
É compreensível que uma assim crescente instabili­dade das formas semeas­se a confusão no espírito da época. De tal modo que, de um lado, Veláz­quez continuava a ser en­carado, impassivelmente, como uma espécie de campeão do naturalismo: "Pintor sapiente, no qual a arte gloriosa deixa estupe­facta a Natureza", escreve G. de Salzedo Coronel em 1627, enquanto J. de AI­faro continua a chamá-lo "Apelles deste nosso sé­culo", em pleno 1658. Mas, de outro lado, não haveria de faltar quem ou­sasse denunciar, no pintor do rei, tais atentados "con­tra Ias regias dei arte", como relata seu biógrafo Palotino um século depois (1724). E mesmo uma au­toridade artística como o grande pintor florentino hispanizado Vicente Car­ducho (Carducci) referir­-se-á veladamente a Veláz­quez como um "pintor in­dodo y buen prádico"... "Diálogos", 1633).
E efectivamente só com Quevedo que se inicia o acercamento ao problema estético de Velázquez. Não sabemos ao certo de quando data o seu retrato, ainda que o "terminus ante quem" seja evidentemente a prisão do poeta concep­tista em 1639, mas é certo que desde o início dos anos 20, num poema per­tencente à série "Silvas" ("Silva el pincel"), Quevedo haja captado algo das no­vas possibilidades expres­sivas que se esboçam em Velázquez, ao escrever: "con las manchas dis­tantes que son verdade en él, no semejantes".
Nestes dois versos, já transcritos por Bardi em 1969, há talvez a mais sin­tética e fulminante apreen­são do cômpito da nova pintura barroca, tal como a vinha inventando Veláz­quez.
Trata-se de uma tal novi­dade, que ela aparece aos olhos de um poeta mais velho, Lope de Vega (1562-1635), como um as­sombroso paradoxo: "Oh, imagen de pintor diestro que se cerca de un borrón" Examinemo-lo à luz dos versos de Quevedo.
Desde logo, é agora a "mancha" e não já o dese­nho que conduz a elabora­ção da forma; mas não qualquer mancha e sim a mancha "distante", i.e., aquela que requer uma observação a uma certa distância para que o efeito óptico de que ela é o su­porte se evidencie e possa agir sobre a percepção.
Em seguida, tendo defi­nido o novo agente doa­dor de formas de que se vale o pintor, Quevedo atribui a estas manchas uma "verdade", nas mãos de Velázquez, que não provém de sua eficácia mi­mética ("no semejantes"), mas de sua própria organi­zação formal, i.e., da ma­neira como Velázquez ("en él") lhes infunde verdade poética.
E supérfluo lembrar, mais uma vez, como nos de­talhes de "Las Meninas", (Museo del Prado), anun­cie-se todo o programa da pintura impressionista. Mas observe-se como o ma­nejo da pura mancha cro­mática imanta o gesto do pintor com uma energia vi­brante, que é a própria imagem da nova pintura, de tal maneira a converter o auto-retrato de Veláz­quez, num verdadeiro au­to-retrato ou manifesto de sua poética. Vale mais a pena frisar que, para além de seus prenúncios impres­sionistas, esta poética irra­dia um sentimento de gra­vidade, de continência, de plenitude recolhida, que o impressionismo não com­preendeu, ou talvez sim­plesmente não reteve”

LUIZ MARQUES, “Velazquez,” Galeria, 17, (1989), 55-58.




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