Poesia de Emanuel de Sousa

1.

as uvas colhem-se no arame farpado e no zinco chove o dia de hoje em gotas insistentes. só hoje sei o ontem que fui e amanhã o hoje que serei. tudo demasiado tarde arde num perfume a terra queimada enquanto as imagens se vão sobrepondo desfocadas entre mim e o nada. imagens entretecidas na textura dos dias e sedimentadas no litoral das coisas. oscilo entre o passado e o passado numa procura do tempo e de ti.
tenho os olhos brancos com as pupilas voltadas para o interior.

2.

já não me vejo. os meus olhos estilhaçaram e a água anoiteceu no teu corpo onde tropecei num soluço habitado. nomeava o teu nome em alucinações contidas. já não reconheço os lugares de encantamento. os nomes das cidades. os caminhos. as cores que as coisas assumiam na mansa quietude do entardecer. aquela quietude feita de silêncios no instante antes de anoitecer. quando a natureza é o sol suspenso no fundo da alma. no fundo do horizonte.
já não me vejo. no teu corpo habitado.


Emanuel de Sousa, Eurídice, (Lisboa, Quetzal, 1989), pp.21 e 27

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