Razões de ser da arte (2)

Mallarmé foi outro caso de dedicação total à literatura. Consagrou-se por inteiro à poesia. A sua vocação constituiu uma ascese, uma renúncia aos prazeres e alegrias comuns. A sua entrega exigiu-lhe um desinteresse absoluto em todos os sentidos, até os sonhos de fama e de glória lhe estavam vedados.
[Interrompo para registar que os raios de sol se reflectem na minha janela e o azul do céu irrompe pelo vidro]

Temática

Mallarmé considerava como faltas a sua incapacidade para traduzir a Revelação poética. O poeta perseguiu com ardor e desespero um ideal poético elevado, talvez inacessível, obececado pelo "Azur" símbolo mesmo da perfeição, do inatingível. Experimentou uma profunda angústia perante a folha branca. A sua escrita tornou-se, assim, uma exploração aos confins da angústia, até porque o espectro da impossibilidade de criar o atemorizava. A incapacidade de traduzir numa grande obra a sua comunicação com o ser e o Belo atravessou toda a sua obra, cujo objectivo fundamental foi a busca da essência. Ao procurar o ser, Mallarmé sentiu-se constantemente ameaçado de desdizer o irascente. O Universo representava um caos aparente, porque a sua ordem e harmonia são intraduzíveis,. Através da hipérbole o poeta tentaria dar o salto para o além, efectuar a passagem do contingente ao necessário, da aparência à realidade escondida.
O culto da poesia era a sua religião, o seu ideal, não no sentido ético do termo, mas antes na dimensão metafísica: expressar a essência dos seres em opsição às aparências contingentes.
Escrever seria antes de mais, no dizer de Merleau-Ponty, instalar-se no interior da linguagem, uma vez que não há um para além da linguagem. No entanto, a obra não poderia ser reduzida à dimensão meramente linguística: o Mallarmé que escrevia renunciou ao grrande livro que tudo deveria dizer... contudo a linguagem não se reduz a uma serviçal do sentido, ela mesma é reveladora de sentido/sentidos.

Problemática

O refinamento, a subtileza, a concisão e o hermetismo da poesia de Mallarmé colocam a velha questão da comunicação escritor/leitor. Asua poesia tornou-se gradualmente mais de mais difícil acesso. O seu hermetismo deveu-se, por um lado, a uma tendência espontânea e à natureza mesma deste género de poesia, mas por outro lado surgiu de um esforço consciente para fazer do verbo poético um código esotérico acessível apenas a iniciados.Mallarmé pretendia colocar num só verso todo um poema e refinava-o como se este fora uma fórmula matemática.
Discernimos aqui a paixão do preciosismo, o gosto do subtil, o exercício de contornar. O ritmo da sua prosa é flagrante neste sentido.
Para Mallarmé a poesia é concebida enquanto linguagem sagrada e o poeta/sacerdote recusou a entrada no templo ao profano. O mistério poético seria intrínseco, uma necessidade, constituiria a essência mesma da poesia, pois ela caracterizar-se-ia pelo seu mistério e inacessibilidade.
Mallarmé não procurou edificar uma poesia de ideias. Uma vez declarou a Degas, -quando o pintor ao tentar fazer um soneto se queixava que apesar das ideias não lhe faltarem, não conseguia escrever o poema - que era com palavras e não com ideias que se faziam os sonetos. Amava as palavras sobretudo pela sua possível significação, mais do que pelo seu "verdadeiro" sentido. Mallarmé traduzia os conceitos em símbolos, ao invés de nomear objectos. Tentava fazer nascer no leitor a impressão e como que suscitar o desejo da sua presença ou o vazio da sua ausência: "Noumer un object, c'est supprimer les trois quarts de la jouissance du poème qui est faite de devenir peu à peu, le suggirer, voilá le rêve."
Todavia, por muito sedutora que seja esta tentativa corre o risco de se tornar incomunicável e dissolver-se no silêncio.
Assim perguntarão, a que se reduzirá a comunicação entre o poeta e o leitor?
A razão de ser da arte será sobretudo um meio de expressão da cosmovisão do artista?

Bibliografia:
Mallarmé, Poésies, (Paris, Le libre de poche, librairie Générale Française, 1977).
Mallarmé, Contos Indianos, (Lisboa, Editorial Teorema, 1997)
André Lagarde; Laurent Michard, XIXe siècle, (Paris, Bordas, 1969)

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