A propósito das razões de ser da arte evoco, mais uma vez Kafka.

II
Funçao catártica e valor ontológico da arte em Kafka
Kafka que tal como Flaubert se dedicou por completo à literatura também foi assaltado pela dúvida :
Não teria sido a sua atitude um mero correr atrás de uma miragem?
A dúvida de Kafka ultrapassou o campo da literatura, pois transferiu-a para lá da Literatura, com a profunda intuição de que tudo não passaria de um desfilar de "ilusões". Tudo é fantasia, anotou em 2 de Outubro 1921 no seu diário: "A família, o escritório, os amigos, a rua tudo é fantasia e a mulher quimera mais ou menos longínqua. A verdade bem próxima é que tu bates com a cabeça contra a parede de uma prisão sem porta nem janela..."

Nesse mesmo ano registou grande impaciência em relação à literatura pois, dependente do sensível ao qual se deveria obrigatoriamente remeter, através das metáforas, a fim de tentar tornar-se compreensível, sentia-se "aprisionado".

Todavia, em Janeiro de 1922 retomou o "velho exorcismo" da escrita. De novo concentrado na literatura Kafka reconhecer-lhe-ia o antigo valor terapêutico:

"Há algum tempo comecei a escrever para me curar daquilo a que chamam nervos, sento-me na escrivaninha aproximadamente desde as sete horas da manhã. Mas isto nada representa senão um arranhar de unhas no interior de um subterrâneo." "Estranha, misteriosa consolação dada pela Literatura, talvez perigosa, talvez libertadora : salto para fora das fileiras de assassinos, Acto-observação. Acto-observação porque observação de uma espécie mais alta;contudo não mais aguda, quanto mais se eleva, mais inacessível "fileira" mais independente se torna, mais obedece a leis próprias do seu movimento, mais o seu caminho imprevisível e alegre, mais ele sobe.
Ao escrever o "Castelo", demonstrou o maior interesse por este seu último romance, afirmando:
"Eu queria esconder-me com o meu caderno e não falar a ninguém pelo menos durante um ano."


O escritor obteria da natureza catártica das suas composições um efeito terapêutico altamente benéfico. Kafka utilizaria a dimensão objectivante da literatura como recurso para melhor esquecer e compreender os seus problemas psíquicos logrando ainda ao exteriorizá-los o alívio para as suas tensões interiores. Embora escrevesse por "vocação," chegou a julgar-se "destinado a uma missão, precisamente porque
necessitaria da Literatura para estabelecer o seu equilíbrio interior profundamente instável. O efeito da catarse em Kafka não seria de prazer ou fruição. Assemelhar-se-ia a um estado de bonança depois da grande tempestade. O fazer literário neste autor consistiria numa espécie de processo catártico directamente relacionado com a sua agitada vivência. Escrever constutuiria a única e indispensável "saída". Poderia não ter consciência de tal processo, mas os seus textos parecem validar esta perspectiva.
Deste modo a teoria da catarse não se aplicaria, neste caso a uma audiência, como o discutiu Aristóteles na Poética, à alma "torturada" do próprio autor.
A natureza catártica da sua expressão artística traduzir-se-ia através da projecção de situações vividas dentro de si mesmo ao invés de retratar a natureza ou a paisagem humana que o envolvia:

"No meio tempo depois de ter sido perseguido a chicotadas através dos períodos de exaltação comecei a escrever, e esta actividade
literária é o mais importante para mim sobre a terra, um pouco semelhante ao que é o delírio para o louco (se o perdesse ficaria louco) ou a grandeza para a mulher, isto nada tem a ver com o que escrevo, reafirmo aqui, pois, o anseio com justiça.
Porém, sei de igual modo o que significa para mim. Eis o motivo pelo qual tremo de medo ante a menor perturbação, mantendo o meu trabalho apertado contra mim e não somente a ele, mas também a solidão que o acompanha."


A escrita representaria para Kafka uma conotação misteriosa, a actividade literária surgiria como imperativo vital, escrevia para si próprio mais do que para o público. Situação que estaria directamente relacionada com os mecanismos da sua elaboração artística'com a projecção catártica da sua obra.

Talvez por isso descrevesse pormenorizadamente a "paisagem", de forma tão realista que se pode considerar legítimo dizer, que superou as descrições naturalistas com o fito último de compreender o sentido da vida, como recurso mágico permitindo-lhe exercer controlo sobre os objectos modificando a realidade, de acordo com as suas concepções sobre a mesma.


Outro meio de domínio do real consistiria na materialização de situações interiores vividas por ele.
Por último, a Literatura permitir-lhe-ia o desdobramento a fim de
atender a solicitações antagónicas ou a fuga ao impasse; caso de "Preparativos para um casamento no campo", melhor exemplo disso é a "Sentença" onde o protagonista ou o pretenso amigo ausente são uma mesma pessoa.

Contudo, mais tarde escrevendo novamente ao amigo Max Brod formularia críticas profundas à Literatura:

"A Literatura faz-me viver, mas não é mais justo dizer que me faz viver esta espécie de vida? O que não significa ser a minha vidamelhor quando não escrevo. Neste caso o contrário é bem pior, é mesmo intolerável, sem outra saída a não ser a loucura. Mas o que representa o estado o literário em si mesmo ? A criação
de uma doce e maravilhosa recompensa, mas para quê? Esta noite vi claramente, com a nitidez de uma lição para crianças, que ela é o salário para serviço do diabo. Esta descida às potências obscuras esta debandada de espíritos naturalmente ligado, estas carícias equívocas e tudo o mais que se pode passa; em baixo e de que
nada se sabe ao alto quando se escreve histórias ao sol... Talvez haja também uma outra forma de criação eu só conheço esta, à noite, quando a angústia impede-me de dormir, eu só conheço esta."
Apesar do entusiasmo inicial acabou por abandonar definitivamente "O Castelo"entre o fim de Agosto e o limiar de Setembro após ter declarado a Brod :
"...0 que é necessário para viver é simplesmente renunciar a usufruir de si mesmo, entrar casa em lugar de admirá-la e coroá-la de flores...o que para mim era um jogo vai de facto acontecer. Eu não me resgatarei pela literatura.Toda a minha vida eu estive morto e agora vou realmente morrer. O escritor em mim morrerá por certo imediatamente pois uma figura não tem solo nem consistência, nada é senão poeira." Prosseguiu. "Mas eu não posso continuar a viver porque não vivi permaneci argila. A centelha, não a transformei em chama, não me servi dela a não ser para iluminar o cadáver. Seguir-se-á um enterro singular o escritor, quer dizer uma coisa que não existe levará ao túmulo o velho cadáver, o cadáver de todo o tempo."

Gradualmente, Kafka convencer-se-ia que a arte ocultaria condições negativas, as quais a condenariam, inevitavelmente, a uma frustração, arrastando os que a ela se dedicam à derrota e ao desânimo. Flutuando à deriva entre o fantástico e o "real", produto de uma interioridade que multiplica e transforma caleidoscopicamente as imagens recebidas do exterior, a Arte "voltejaria" em torno da verdade, mas com firme propósito de não se queimar." E esta simbiose entre a percepção e a imaginação dirigiria a criação artística no intelecto humano, mas redundaria num paradoxo, situação satirizada por Kafka em algumas das suas narrativas. Marcada pelo que existe de individual e original no seu criador - a obra artística carregaria em si a condenação de permanecer indecifrável, hermética, desafiando eternamente a argúcia e a sensibilidade da crítica. Exceptuando outros critérios acerca da obra de Arte nomeadamente no domínio das Artes plásticas segundo as quais a problemática da mensagem obrigatoriamente implícita na obra de Arte e a concomitante descodificação pela parte do espectadormostrar-se-ia irrisória.
A Arte revelar-se-ia insatisfatória e angustiante, pois os seus objectivos imateriais indefiníveis, nunca lograriam ser alcançados.
Tornar-se-ia avassaladora e absorvente obrigando o artista a um caminhar febril interminável através de "desertos", pois aos seus olhos as obras terminadas desvalorizar-se-iam automaticamente como se fossem miragens. E desencadeariam a busca de novos horizontes difusos, longínquos, que urgiria atingir na ânsia de perfeição. Assim, Kafka materializaria o tema da criação artística mediante o recurso a coisas inacabadas e inúteis,como os bocados de muralha na fronteira da China, os quais não se fechando jamais protegeriam o país das invasões que aliás também não
se verificariam. A experiência artística não remeteria para o caminho da redenção. O pressentimento desta conjuntura já se teria manifestado, simbolicamente, no "Processo" onde o pintor "Titorelli" apesar das suas excelentes relações com a "justiça" é incapaz de ajudar convenientemente o personagem. Sendo acessória e marginalizada a Arte não poderia constituir para KAFKA uma solução de compromisso. A arte não se integraria na sociedade nem garantiria segurança e consideração.
Neste sentido observou Marthe ROBERT :
"Estranha à vida, inimiga da vida, a Arte é um facto do qual ninguém reivindica a utilidade, uma tarefa injustificável e impossível."

Nas histórias de Kafka os artistas são caracterizados como figuras absurdas. Por exemplo em “Investigações de um cão” aparecem identificados com cães de patas atrofiadas voando em céu vazio" cujo estranho procedimento é em geral incompreendido, quando muito conseguia despertar a indulgência de criaturas bondosas e pacientes ou encantar os incautos e desprevenidos, como acontecia com o protagonista da história que se sentia terrível e irresistivelmente atraído pelas figuras estranhas dos Cães artistas, pela música misteriosa que deles se desprendia.) Kafka retratou de uma forma comovente, na sua tragicomicidade, a atitude grave e sincera como os artistas viveriam a Arte e a ela se dedicariam como se desempenhassem uma missão urgente até mesmo indispensável, apesar do facto dessa mesma Arte ser, na sua perspectiva impotente e estéril.
Nesse sentido, Kafka relatou a história da "Ratinha Josefina", em termos de "piedosa ironia", a qual emitindo apenas um sopro inferior ao comum aos ratos "cantava" com a maior emoção convencida de que assim salvaria o seu povo. A verdade, diz o narrador, "é que não nos salva nem incute, infunde nenhuma força especial." E quando Josefina desapareceu o povo seguiu tranquilo sem decepção visível continuou imperturbável o seu caminho. Este tipo de representações da Arte e do artista, surgiriam num conto escrito em 1922 intitulado "Um artista da Fome". O próprio título, constituiria, por assim dizer, uma primeira ironia de KAFKA : o jejuador como personagem principal, um jejuador como modo de definir a gratuidade total da criação artística.

O "Artista da Fome" personagem escrupuloso até à insanidade, nem procurava dormir, falando e cantando ao longo da noite e do dia, no intuito de demonstrar aos seus vigilantes que não se alimentava furtivamente. Em troca do seu sacrifício e autenticidade recebia como recompensa a admiração do público pela sua brilhante habilidade no jogo da mifisticação.

A decepção do "artista" agravou-se quando o empresário devido a motivos comerciais pretendeu interromper este jejum já de quarenta dias, impedindo-o assim de alcançar o êxito e superar todos os "recordes".

Contudo, mesmo decrescendo o interesse e a curiosidade quanto ao desfecho da prova, o jejuador persistiu teimosamente acabando por exibir-se sobre fardos de palha dentro de uma jaula de circo, a qual se situava no trajecto conducente à zona onde se encontravam as feras. Desvanecida a "bisbilhotice" inicial, os populares já se detinham ao passar perto do "artista", quando visitavam os "outros animais".

Gradualmente os empregados do circo, embrenhados em actividades mais importantes esqueceram-se do "artista da fome. Por conseguinte, não renovavam o quadro onde se registava a sua performance. Decorridas muitas semanas, um dos inspectores do circo reparou naquela jaula vazia, perguntou qual o motivo da mesma não ser utilizada. Descobriram por entre a palha o jejuador ainda vivo. O inspector cinicamente, perguntou-lhe se ainda jejuava, e logo ele em resposta quase inaudível muito simplesmente implorou perdão a todos.
"Sem dúvida, retorquiu-lhe o inspector (dando a entender, gesticulando significadamente dirigindo-se aos presentes, que o homem havia enlouquecido).

Retomando a palavra afirmou: "Perdoamos-te".

Então o "artista da fome" confidenciou, com ingenuidade, que sempre tivera o desejo de ver reconhecida a sua resistência à fome.

E, perante a atitude do inspector, que se servira de uma condescendência apenas utilizada no relacionamento com loucos e crianças, ao afirmar que na verdade todos o admiravam, o jejuador ripostou que não deviam admirá-lo pois apenas jejuara por nunca ter encontrado alimento a seu gosto.

O artista seria, assim, caracterizado como um ser inseguro, carecendo constantemente dos aplausos, da admiração e de aprovação geral, a fim de se poder sentir plenamente realizado. Não atingindo esse objectivo e como atenuante do fracasso recorreria à ironia, minimizando o próprio sacrifício através doauto-desprezo.

O "Artista da Fome" atingira, finalmente, a meta porém, perante a indiferença e o modo como era considerado (como se fora um irresponsável) apercebeu-se de que tudo fora em vão, um mero correr atrás de uma miragem. Seria ele próprio e sob profunda melancolia, quem fechou o círculo da incompreensão relativamente ao seu esforço, tirando-lhe todo o mérito (jejuara apenas por não ter encontrado alimento que fosse do seu agrado). Morreu como o deveriam fazer todos os artistas, implorando perdão por terem vivido.



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