Joshua Slocum (1844-1909?) nos Açores

Joshua Slocum foi considerado o primeiro navegador solitário a circum-navegar a terra, numa viagem que decorreu entre 1895 e 1898. No livro Sailing Alone Around the World relatou a sua viagem à volta do mundo. Trata-se de uma descrição plena de fascínio, na medida em que para além de contar as suas aventuras náuticas, as tempestades, os perigos causados pelos piratas e indígenas, Slocum revela, através das suas histórias, os padrões de cultura da sua época.
Um aspecto que me encantou foi a antropomorfização do Spray, o barco onde navegou. O barco tem personalidade e vontade próprias. Destaco também o relato das recepções festivas, por parte das populações locais, em cada porto onde atracava, os presentes que recebia, as relações com os marinheiros que ia encontrando.

Com nasci nos Açores e quando criança viajei de barco, várias vezes - num paquete - entre a minha terra e Lisboa, vou transcrever, aqui, uma passagem relativa à chegada ao referido arquipélago:

Terra à vista ! Na manhã de 19 de Julho uma cúpula mística como uma
montanha de prata jazia sózinha no mar à minha frente. Embora a terra estivesse completamente escondida pela neblina branca e cintilante que brilhava ao sol como prata polida, tive a certeza que era a ilha das Flores. Às 16:30 estava de través. Entretanto a neblina desaparecera. A ilha das Flores fica a setenta e quatro milhas do Faial, e embora seja uma ilha alta, permaneceu por descobrir durante muitos anos depois de o primeiro grupo de ilhas ter sido colonizado.
No dia 20 de Julho, de manhã cedo, vi o Pico a surgir sobre as nuvens na proa de estibordo. Terras mais baixas avançaram à medida que o sol consumia o nevoeiro matinal, e foi aparecendo uma ilha após outra. Quando me aproximei, surgiram campos cultivados, e como era verde o milho! Só aqueles que viram os Açores do convés de um barco conhecem a beleza da imagem no meio do oceano. (...) Cheguei aos Açores na estação da fruta, e não tardei a ter a bordo mais fruta de todas as espécies do que eu podia comer. Os ilhéus são sempre as pessoas mais bondosas do mundo, e nunca encontrei pessoas mais bondosas do que os bons corações deste lugar. O povo dos Açores não são uma comunidade muito rica. O fardo dos impostos é pesado, com escassos privilégios em troca, e o ar que respiram é a única coisa livre de imposto. A metrópole nem sequer permite que tenham um porto de entrada para um serviço de correio estrangeiro. Um paquete que passe pertissimo com o correio para a Horta tem de o entregar primeiro em Lisboa, ostensivamente para ser desinfectado, mas na verdade por causa da tarifa do paquete. As cartas que enviei da Horta chegaram aos Estados Unidos seis dias depois da minha carta de Gibraltar, enviada treze dias depois.
No dia a seguir à minha chegada havia a festa de um grande santo. Barcos cheios de pessoas vieram de outras ilhas para festejarem na Horta. O convés do Spray esteve cheio, de manhã à noite de homens, mulheres e crianças. No dia a seguir à festa um nativo de bom coração aparelhou uma junta de bois e conduziu-me durante um dia pelas belas estradas do Faial, "porque", segundo disse num inglês macarrónico, "quando estive na América e não sabia dizer uma palavra de inglês, tive muitas dificuldades até encontrar alguém que parecia ter tempo para ouvir a minha história, e eu prometi ao meu santo que se algum estrangeiro viesse ao meu país eu tentaria fazê-lo feliz." Infelizmente, este cavalheiro trouxe consigo um intérprete para eu ficar a "conhecer melhor a terra". O homem quase me matou de enfado, a falar de barcos e viagens, e dos barcos que manobrara, a última coisa no mundo que eu queria ouvir. (...) O meu amigo e anfitrião quase não teve oportunidade de dizer uma palavra.


Comandante Joshua Slocum, Navegador Solitário, Viajando Sózinho à Volta do Mundo, (Lisboa, Publicações Europa-América, 2000), pp.62-63

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