Duas Vias para a Compreensão da Hermenêutica Actual: Heidegger e Paul Ricoeur(8)

Segue-se uma síntese da análise heideggariana acerca do conceito de experiência em Hegel. O estudo deste ensaio, de Heidegger, mostra-nos claramente o modo próprio como Heidegger desmonta um texto; através desta análise vemos em que consiste a hermenêutica heideggariana e qual o sentido da designada "destruição" da Metafísica e da consequente edificação de uma nova Filosofia a partir dos textos da Tradição.
Hegel afirmou que a Filosofia " é o conhecimento efectivo daquilo que é na verdade".
Aquilo que é na verdade, o verdadeiramente ente, seria posto em evidência como o Real efectivo, cuja efectividade seria o"Espírito". A essência do "Espírito" residiria na consciência de si.
No período Moderno, diz-nos Heidegger, o pensamento é que seria o princípio, quer dizer o pensamento tomar-se-ia a ele mesmo como ponto de partida. O pensamento procuraria para ele o seu "fundamentum absolutum". A Filosofia instalar-se-ia na "terra", da incondicional certeza de si e do saber.
O Absoluto é para Hegel o Espírito. O conhecimento efectivo do Ente como ente é agora o conhecimento absoluto do absoluto na sua "absolutidade".

Seria preciso medir o conhecimento do absoluto quanto à sua conformidade com o Absoluto. Seria necessário, por conseguinte, reconhecer o absoluto, pois de outro modo toda a delimitação crítica cairia no vazio. Daqui se deduz outra coisa: a discussão do instrumento de conhecimento. Todavia, conclui-se que o exame crítico do instrumento não dá conta do absoluto e isto apesar ou a despeito da sua pretensão imediata de melhor saber. (Aqui reside a crítica a Kant).
A propósito, declarou Hegel: "O absoluto está desde o princípio, à partida "em si" e "para si" junto de nós e quer permanecer junto de nós. Este perto de nós, junto de nós, seria já e em si mesmo o modo como a luz da verdade, o Absoluto ele mesmo, nos iluminaria. O conhecimento do Absoluto que se encontraria sob o traço desta luz, "apresenta-o" e reflecte-o, sendo na sua essência o traço irradiante ele-mesmo e não o meio através do qual o raio passaria.

O primeiro passo, que o conhecimento do Absoluto teria a dar, consistiria em aceitar e receber com toda a simplicidade o Absoluto na sua Absolutidade ou seja no seu ser-junto-de-nós.
A Filosofia consistiria no conhecimento do Absoluto e como tal seria conhecimento efectivo, ou seja um conhecimento que representaria o real ele-mesmo e na sua verdade. Para isto se poder realizar, a ideia habitual de conhecimento deveria ser abandonada, o conhecimento não poderia ser considerado como meio, nem como instrumento.
A Filosofia, de acordo com Hegel, seria considerada o Saber incondicionado. A Filosofia na "ciência". Esta designação não significaria que a Filosofia tomou para si o modelo das outras ciências e que ela realizaria na perfeição este modelo ideal. Se o nome de ciência adquiriu no interior da Metafísica absoluta, o lugar do nome de Filosofia, teria sido porque essa significação derivaria da natureza e da certeza de si, da sua "auto-segurança", da certeza do sujeito conhecendo-se incondicionalmente. Seria este o "subjectum" que a Filosofia desde o começo reconheceu como aquilo que está presente. A Filosofia ter-se-ia tornado "ciência", porque ela permaneceria "a Filosofia". Competir-ia-lhe considerar o ser, o ente enquanto ente. O ente manifestar-se-ia no pensamento de tal modo, que todo o ente seria uma res cogitans e nesse sentido sujeito - acontecendo assim desde Leibniz. O sujeito "entende" o seu ser, desdobra-o na relação ao objecto, que é uma relação de representação. Esta relação seria já uma relação de representação para si. A representação apresentaria o objecto representando-o ao sujeito e nessa representação o sujeito ele-mesmo apresentar-se-ia como tal. A "apresentação" seria assim o traço fundamental do saber no sentido da consciência de si, do sujeito. A apresentação seria um modo de manifestação(*). Enquanto presença, a apresentação seria o ser do ente que estaria no género do sujeito (consciência "incondicionada").
A consciência sendo o modo velado da existência do Espírito deveria tornar-se naquilo que é ou seja consciência do Absoluto. Este devir da consciência, seria por assim dizer uma conquista. A consciência, gradualmente recusaria as ideias parciais que a representam para finalmente ressurgir ideia Total a qual tornará a consciência absolutamente transparente. A Fenomenologia do Espírito é afinal o desvelamento do Absoluto, interior ao sujeito pois a subjectividade consistiria na consciência condicionada em si, segundo Heidegger, incondicionada de si.
Hegel apresentou-nos o itinerário da consciência voltada para a razão do seu devir: o Espírito. A Fenomenologia do Espírito seria, assim, o triunfo da Lógica, da ciência da Lógica. O homem conquistaria o seu Absoluto através da manifestação aparição da "presença"das imagens da sua própria representação. No entanto, o que é este Absoluto dominado pela Razão, senão a plena transparência da consciência a si mesma, o triunfo ilusório do "subjectum"? O devir de Heraclito, contrapôs Heidegger, constituía um jogo misterioso, o devir em Hegel seria a "divina comedia" mediante a qual a Razão asseguraria para si o domínio do Real.
Heidegger vislumbrou na descrição do itinerário do Espírito uma aproximação à "diferença ontológica". A expressão ingénua da consciência, a consciência natural, quer dizer a consciência ôntica medida pelo sendo objecto, todavia esta não pode trazer à sua presença o objecto se não possuir ela própria a capacidade de o superar. A realidade da consciência concentra-se pois, sempre, para além do objecto embora ela seja consciência pre-ontológica. Este "recuo da consciência relativamente aos (seus) objectos por ela apreendidos, ou explicitando melhor, esta "diferença" que lhe é interior, torna possível o movimento da identidade ou antes da identificação, uma vez que a consciência não se realiza no conhecimento da Razão, mas sim no reconhecimento da Ideia.
Todavia - referiu Heidegger no comentário ao parágrafo sexto do texto referido no começo - a perspectiva teológica desta Filosofia impediu Hegel de pensar em toda a sua profundidade o ser da consciência, o sein da palavra "Bewnsstsein" o que quer dizer que consciência e saber identificar-se-iam. Também a consciência acabaria por se identificar com o reconhecimento da totalidade tornada inteligível pela Realidade do Absoluto.

O processo de identificação, desvanecer-se-ia face à identidade consumada, a "aparição" alienar-se-ia no jogo da "aparência", a "gratuidade" do ser e subjugada pelo olhar da Razão.

Afinal, comentou o autor de "Chemins..." a Fenomenologia do Espírito é a explicitação de uma tautologia - tautologia - a clarificação da estrutura lógica da Razão: o representado - sendo - e a representação - ser que se apresenta. A "presença" que representa e finalmente identificada com o presente representado e absolutizado.

Representada a partir do presente (a presença) tornar-se-ia o que está presente acima de tudo e assim o sendo presente supremo:
A dialéctica hegeliana, repousaria, segundo Heidegger, sobre o modelo platónico da Ideia, a qual seria a imagem objectiva (eidos) da consciência sujeito; o em-si do para-si. A superação da"Ideia" efectuar-se-ia sempre no horizonte de uma nova ideia que integraria a anterior. O Absoluto seria, assim, a ideia Perfeita, a qual reflectiria a transparência da consciência, do em-si tornado para si. A Razão, tornar-se-ia deste modo, a causa última; acabando por "assenhorear-se" da realidade do ser, "domesticando" o Tempo. Neste sentido, afirmou Heidegger:
"O objecto original do Pensamento, apresenta-se como a causa, a "causa prima", que corresponde ao retorno pendente, à última "ratio", a justificação última. O ser do sendo e representado no sentido de fundamento de forma exaustiva como causa sua."
Hegel teria reduzido o Eros ao Eidos, a vida ao Espírito. A vida seria o desenvolvimento da consciência que se procuraria através das suas próprias figuras e se superaria projectando-se em objectivações cada vez mais adequadas. A ideia e o discurso histórico mediante o qual se conquistaria o pensamento. (Hegel atribuiu, assim, à História o estatuto que Kant conferia à Ética).
Mas, torna-se premente perguntar, em que consiste, afinal o conceito de experiência em Hegel interpretado por Heidegger. Tudo quanto se referiu até agora, se encontra, intrinsecamente, relacionado com essa "definição", fornecendo os dados que nos permitem compreender a interpretação heideggaria na do conteito hegeliano de experiência.
"A experiência é este modo a partir do qual a consciência se lança em busca do seu conceito, enquanto ela e na verdade". Quando Hegel mencionou o labor do conceito ele não entendeu o "suor" do esforço cerebral nos eruditos, mas sim o absoluto, ele mesmo lutando para se extrair ate à "absolutidade" da sua auto-compreensão, partindo da certeza incondicional de si. A serena constância que caracterizaria a "Parousia" na medida em que ela constituiria a ligação da "presença" junto de nós, permaneceria ao menos compatÍvel com esta pena do Absoluto. É que o Absoluto "entraria" simplesmente enquanto Absoluto, nesta relação).
"A experiência seria o "tender para", que chegaria plenamente onde seria preciso, onde deveria. A experiência, seria o que faz conduzir a ..." como o pastor que conduz o rebanho desde o estábulo e o guia até à montanha". A experiência seria o percurso que se lança até ao que deve alcançar.

A experiência seria um modo da presença, quer dizer do ser. A experiência concerne ao presente na sua presença, na medida em que a consciência se apresentaria a ela própria.

A experiência seria o ser do ente. O ente surgiria na "fenda" da consciência e seria como o aparecendo da representação. A "experiência" identificar-se-ia com o movimento que a consciência ela mesma exerceria sobre ela própria. A experiência desprender-se-ia da vontade de absoluto do ser junto de nós, a representaçao pertenceria à essência da consciência, se a representação por sua vez, encontrar o seu fundamento no virar da consciência, no seu movimento, e se este virar da consciência for o cumprimento da nossa relação essencial ao Absoluto, então a nossa essência ela-mesma, fará parte da absolutidade do Absoluto.

Bibliografia
Martin Heidegger, El ser y el tiempo, (F.C.E. , 1954).
Martin Heidegger, "L'époque des conceptions du monde," in Chemins qui mènent nulle part, (Paris, Gallimard, 1980).
Martin Heidegger, "Hegel et son concept de l'experience," in Chemins qui mènent nulle part, (Paris, Gallimard, 1980).
Martin Heidegger, Introdução à metafísica, (Rio de Janeiro, Editorial Tempo Brasileiro, 1978).
Hegel, Phénémonologie de L'Esprit, (Paris, Aubier Montaigne, 1941).
Paul Ricoeur, Le conflit des interpretations, (Paris, Éditions Du Seuil, 1969)









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