O Ateísmo como Traço de Personalidade

Aos oito anos, quando me preparava para fazer a primeira comunhão, interroguei-me sobre as causas de não experimentar qualquer tipo de emoção, de especial elevação, ou de fervor religioso. Em suma, de não ser iluminada pela chama da fé. Durante, e após o ritual de tomar a hóstia consagrada, nada se passou de inusitado, a indiferença persistia. Pensei, que a explicação para tão estranho fenómeno, se encontraria na célebre máxima bíblica: " Porque são muitos os chamados e poucos os escolhidos" (Mateus, XXII: 1-14), decididamente, eu não figurava no elenco dos "Eleitos do Senhor". Procurei auto-converter-me, com rezas e meditações, leituras de hagiografias, mas o fruto destas tentativas traduzia-se numa cada vez mais profunda descrença. Como nasci, e passei a infância e adolescência em Ponta Delgada, cidade muito influenciada pelo catolicismo - acresce que a minha mãe professava, nesse período, uma fé incondicional na doutrina da Santa Madre Igreja Católica Apóstólica Romana - segui o itinerário/via-sacra típicos: baptismo, catequese, confissão, primeira comunhão, profissão de fé, crisma. Fiz retiros espirituais, leituras sistemáticas da Bíblia Novo - do Novo e do Antigo Testamentos - de textos dos Doutores da Igreja, de vidas de santos, como já referi, de obras de proselitismo, de teologia, e assim por diante. A Fé não queria nada comigo, ou a inversa, ou ambas.

Mais tarde, procurei conhecer os princípios, textos fundamentais, e ritos de outras confissões, para chegar à conclusão de que me sinto uma extra-terrestre no mundo da religião e, já agora da mística e do esoterismo.

Todavia, devo dizer que gosto muito de frequentar templos - de preferência desertos ou quase - mas por razões estéticas. Casos da Igreja Matriz ( S.Sebastião) e da Igreja do Colégio, ambas de Ponta Delgada, da catedral de Trondheim, das Sés de Évora, Lisboa, da Guarda, de Viseu, da Fraumünster Zürich, onde se contemplam vitrais de Chagall, da igreja das Sete Cidades, do Convento de Cristo, em Tomar, entre tantos outros espaços "sagrados".

Para rematar uma tradução do famoso texto do sofista Crítias, Sísifo -Fragmento B 25.

Houve um tempo, quando sem ordem era a vida humana, e bestial, dominada pela força, um tempo em que não existia prêmio para os bons, nem castigo para os maus.

Em seguida, penso que os homens emanaram as leis para punir, para que a Justiça fosse senhora igualmente absoluta de todos e tivesse como discípula a Força; e fosse punido toda pessoa que pecasse.

Mas dado que as leis desencorajavam os homens a cumprirem delitos explícitos, mas não às escondidas, então, suponho eu, um homem sábio de mente e engenhoso inventou para eles o temor dos deuses, de tal forma que existisse um espantalho para os malvados também para o que fizessem às escondidas, pensassem ou dissessem.

Para atingir a mente dos homens estabelecia a morada dos deuses lá donde sabia que vinham aos mortais os sustos e os consolos para sua mísera vida: da esfera celeste, onde via os raios, onde ouvia os horrendos trovões e o corpo estrelado do céu, obra admiravelmente vária de um artífice sábio: o Tempo; aí caminha fúlgida a massa quente do Sol, e desce sobre a terra a úmida chuva.

Assim, agitando tais sustos diante dos olhos dos seres humanos, e servindo-se deles, construiu, como artista, com a palavra, a divindade, colocando-a num lugar adequado a ela; e derrotou com as leis a ilegalidade.

Por este caminho, portanto, eu creio que no princípio alguém tenha persuadido os seres humanos a crerem na existência dos deuses.

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