Poemas de Afonso Duarte e de Nuno Júdice
Seguidilhas
1
Dizei vosso verso,
Meu verbo disperso
Nas asas do vento?
- Foge à luz dum pensamento
A alma dum sonho-universo
Perdida de sentimento.
2
Qual é esse vago
Dos sonhos que trago
Dos ecos dos montes?
- Ao longe nos horizontes
Pede-o ao luar sobre um lago.
Pede-o às águas das Fontes ...
3
E quais os sentidos
Poemas erguidos
Das verdes folhagens?
- Paisagens, tudo paisagens ...
São sonhos indefinidos
De vozes vagas de Imagens.
(...)
Afonso Duarte, Antologia Poética, (Lisboa, Direcção-Geral da Divulgação, 1984), p.26
Estudo Biográfico
Encontrou uma nova secura com que, disfarçando
a amargura da alma, se dirigiu aos seus semelhantes.
Os traços do rosto modificaram-se, e também a voz:
agora, com entoações trágicas, provocava a emoção
do auditório. E se alguém lhe respondia nesse mesmo tom,
demonstrando adesão ou correspondência afectiva,
mudava subitamente. Tornava-se interior, fechado,
e o brilho dos seus olhos sombrios dissipava
a momentânea atmosfera de entendimento.
Assim recebia amigos e inimigos. Secreto
como quem domina a profundidade do espírito,
mas igualmente e vulnerável e infantil, até
morrer, como se esperava, soltando sangue e riso
pela boca.
O Viajante
Que porto abrigará o fatigado corpo? Que abraço
de ocasional mulher o despertará, de madrugada,
do sono ébrio? Espero por ele, num velho patamar,
contando os degraus para passar o tempo; e
os meus dedos esfarelam o resto do pão, que
as fugazes gaivotas não teriam desprezado. Foi
aqui que o deixei, há anos, cansado das suas
histórias inverosímeis e do cheiro da taberna
(tabaco barato e vinho entornado) - e também
de um sentimento confuso que as suas confissões
transportavam: que imagem de mulher arrastava,
pela solitária alma, que ainda hoje me atormenta
como se, eu próprio, a tivesse beijado,
em despedidas longínquas de lenços e mastros?
Por isso estou aqui, esperando que a sua voz
familiar dissipe a treva e me aqueça por instantes,
com um hálito de aguardente. «Quem é ela»,
dir-lhe-ia, «a feminina sombra que tu persegues
em quartos estranhos de estranhos países?» E ele,
com uma desculpa, conversaria de cidades e de
barcos, até partir, sabendo que não haveria regresso.
Nuno Júdice, Obra Poética (1972-1985), (Lisboa, Quetzal Editores, 1991), pp. 158 e 290
1
Dizei vosso verso,
Meu verbo disperso
Nas asas do vento?
- Foge à luz dum pensamento
A alma dum sonho-universo
Perdida de sentimento.
2
Qual é esse vago
Dos sonhos que trago
Dos ecos dos montes?
- Ao longe nos horizontes
Pede-o ao luar sobre um lago.
Pede-o às águas das Fontes ...
3
E quais os sentidos
Poemas erguidos
Das verdes folhagens?
- Paisagens, tudo paisagens ...
São sonhos indefinidos
De vozes vagas de Imagens.
(...)
Afonso Duarte, Antologia Poética, (Lisboa, Direcção-Geral da Divulgação, 1984), p.26
Estudo Biográfico
Encontrou uma nova secura com que, disfarçando
a amargura da alma, se dirigiu aos seus semelhantes.
Os traços do rosto modificaram-se, e também a voz:
agora, com entoações trágicas, provocava a emoção
do auditório. E se alguém lhe respondia nesse mesmo tom,
demonstrando adesão ou correspondência afectiva,
mudava subitamente. Tornava-se interior, fechado,
e o brilho dos seus olhos sombrios dissipava
a momentânea atmosfera de entendimento.
Assim recebia amigos e inimigos. Secreto
como quem domina a profundidade do espírito,
mas igualmente e vulnerável e infantil, até
morrer, como se esperava, soltando sangue e riso
pela boca.
O Viajante
Que porto abrigará o fatigado corpo? Que abraço
de ocasional mulher o despertará, de madrugada,
do sono ébrio? Espero por ele, num velho patamar,
contando os degraus para passar o tempo; e
os meus dedos esfarelam o resto do pão, que
as fugazes gaivotas não teriam desprezado. Foi
aqui que o deixei, há anos, cansado das suas
histórias inverosímeis e do cheiro da taberna
(tabaco barato e vinho entornado) - e também
de um sentimento confuso que as suas confissões
transportavam: que imagem de mulher arrastava,
pela solitária alma, que ainda hoje me atormenta
como se, eu próprio, a tivesse beijado,
em despedidas longínquas de lenços e mastros?
Por isso estou aqui, esperando que a sua voz
familiar dissipe a treva e me aqueça por instantes,
com um hálito de aguardente. «Quem é ela»,
dir-lhe-ia, «a feminina sombra que tu persegues
em quartos estranhos de estranhos países?» E ele,
com uma desculpa, conversaria de cidades e de
barcos, até partir, sabendo que não haveria regresso.
Nuno Júdice, Obra Poética (1972-1985), (Lisboa, Quetzal Editores, 1991), pp. 158 e 290
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