O Mito de Orfeu (10)

DIZER TREVAS



Como Orfeu, toco

a morte nas cordas da vida

e à beleza do mundo

e dos teus olhos que regem o céu

só sei dizer trevas.



Não te esqueças que também tu, subitamente,

naquela manhã, quando o teu leito

estava ainda húmido de orvalho e o cravo

dormia no teu coração,

viste o rio negro

passar por ti.



Com a corda do silêncio

tensa sobre a onda de sangue,

dedilhei o teu coração vibrante.

A tua madeixa transformou-se

na cabeleira de sombras da noite,

os flocos negros da escuridão

nevavam sobre o teu rosto.



E eu não te pertenço.

Ambos nos lamentamos agora.



Mas, como Orfeu, sei

a vida ao lado da morte,

e revejo-me no azul

dos teus olhos fechados para sempre.


Ingborg Bachmann, O Tempo Aprazado, (Lisboa, Assírio e Alvim, 1992), pp.27-28

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