Confidências e Desabafos de Savarin (124)

Passo meses sem beber, "but sometimes I feel in the mood for alcohol". Nesses momentos, cedo sem complexos ao prazer de saborear umas doses generosas de bebidas espirituosas. Aliás, só me entrego aos efeitos dos vapores etílicos quando me sinto "in the mood for drunkennesse", pois se não estiver para aí voltado, apenas um golo de cerveja ou de vinho me provoca uma insuportável náusea, ainda mais profunda do que a do Jean-Paul. Já experimentei infringir este mandamento com resultados desastrosos. Confesso que hoje não bebi, mas aprecio, em especial as boas aguardentes, sobretudo nestes dias feitos de águas mil, nuvens densas e névoas de sortilégio. Um ponche é a bebida ideal para fruir em dias de tempestade. Ontem, ao fim do dia, apeteceu-me reler algumas passagens de A Psicanálise do Fogo de Bachelard, e nem de propósito, abri o livro no capítulo VI, onde se pode ler - todo o capítulo é de ler e chorar por mais:

Uma das contradições fenomenológicas mais evidentes foi-nos fornecida pela descoberta do ácool, triunfo da actividade taumatúriga do pensamento humano. A aguardente é a água do fogo. É uma água que queima a língua e se inflama com a mais pequena faúlha. (...)
O álcool é pois objecto de uma valorização substancial evidente. Ele manifesta também o seu efeito em pequenas quantidades: ultrapassa em concentração os caldos mais deliciosos. Segue a regra dos desejos de posse realista: concentrar uma grande força num pequeno volume. Visto que a aguardente arde diante dos olhos extasiados, visto que aquece todo o ser até à boca do estômago, isso vem provar o sentido convergente das experiências íntimas e subjectivas. Esta dupla fenomenologia prepara certos complexos que o conhecimento objectivo terá que desfazer para recuperar a liberdade da experiência. (...)

Nas grandes festas de Inverno, na minha infância, era costume fazer-se um ponche. O meu pai despejava num prato fundo aguardente da nossa vinha. No centro colocava pedaços de açúcar partido, os torrões maiores que havia no açucareiro. Quando o fósforo tocava numa ponta do açúcar, as chamas azuladas corriam com um ligeiro ruído por sobre o álcool espalhado. A minha mãe apagava o candeeeiro de suspensão. Era a hora do mistério e da festa um tanto ou quanto grave. Os rostos familiares, de súbito irreconhecíveis na sua lividez, cercavam a mesa redonda. Por momentos, o açúcar chiava antes do desabar da pirâmide, algumas franjas amarelas estalavam nos bordos das longas chamas pálidas. Quando as labaredas vacilavam o meu pai remexia o ponche com uma colher de ferro. A colher ficava envolta em labaredas como se fosse um instrumento do Diabo. Nessa altura "teorizava-se": se se apagasse tarde de mais o ponche ficaria demasiado doce; se se apagasse cedo de mais, isso equivalia a "concentrar" menos o fogo e por conseguinte a enfraquecer o efeio benéfico contra a gripe. Havia quem falasse de um ponche que tinha ardido até à última gota. Outros relatavam um incêndio [não na padaria, ...] em casa do destilador durante o qual os barris de rum rebentavam como se contivessem pólvora, explosão esta, de resto, à qual ninguém assistira. À viva força, pretendia-se descobrir um sentido objectivo e geral para este fenómeno estranho ... Por fim, deitavam-me o ponche no copo; quente e pegajoso, na verdade essencial. Por isso eu compreendo Vigenère quando este, de uma maneira um pouco afectada, fala do ponche como "de uma pequena experiência, divertida e rara." (...)Após tal espectáculo, as confirmações do paladar deixam recordações imperecíveis. Entre os olhos extasiados e o estômago consolado estabelece-se uma correspondência baudelairiana tanto mais sólida quanto mais materializada. (...)
Sem a experiência pessoal desse álcool quente e açucarado, da sua chama numa meia-noite alegre, compreende-se mal o valor roântico do ponche, falta-nos um processo de diagnóstico para estudar certas poesias fantasmagóricas.

Seguidamente, Bachelard disserta acerca da obra de Hoffmann, em seu entender atravessada por uma poesia da chama, e marcada pelo complexo do ponche, que se poderia designar, com propriedade, como complexo de Hoffmann.
Gaston Bachelard, A Psicanálise do Fogo, (Lisboa, Litoral, 1989), pp.91-93.

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