Do Tempo

Por recomendação do Luís Duarte, de deliciosa memória - se leres isto, diz qualquer coisa - li empolgada, há 26 anos o Solitário de Ionesco, e ainda hoje lhe agradeço a sugestão.

Sábado - um dia longo, porque recheado de actividades, acontecimentos e vivências interessantes- ao deambular pelo Continente do Vasco da Gama, que raramente frequento,descubro pela módica quantia de um euro, A Busca Intermitente, do criador da Cantora Careca, uma espécie de diário fragmentado da velhice, iniciado aquando das bodas de ouro do escritor. Entre a experiência da angústia, da desagregação da memória, as reflexões mais amargas sobre sua vida em particular, e a condição humana, também se encontram momentos de pura contemplação da beleza do mundo.Contudo, vou transcrever uma passagem em que Ionesco medita sobre o tempo,tema que é várias vezes abordado, e me interessa especialmente.

Muitas vezes a mim mesmo perguntei e muitas vezes escrevi: "Onde é que está o que se passou, onde é que está o que se passou, em que cave, em que arrecadação extravagante, ultramundana, em que arrecadação do nada ou do tudo se encontra o passado?" Será que o passado passa, Deus-sabe-de-que-maneira, para o presente? O presente será sempre, será esse futuro sempre no presente? De certa maneira: oh incerta e paradoxal forma."
O que foi... o que foi... o que foi... Desesperadamente, corro atrás do que foi, atrás do que foi. Será o que já foi "nunca mais"? Talvez, no presente, o passado active este presente, se transforme em presente. Ele existiria da mesma forma que existem aqueles livros enormes nas bibliotecas. Como as páginas que lá estão, fotografadas em clichés minúsculos, para não ocuparem tanto espaço e para poderem ser lidos nos aparelhos, nas lupas, nos microscópios que aumentam, aumentam muito.




Eugène Ionesco, A Busca Intermitente, (Lisboa, Difel, 1990), p. 16

Comentários

Mensagens populares