Da Morte (23)
O texto abaixo citado é uma passagem da obra Infância de Liev Nikoláievich Tolstói (1828-1910). Publicado em 1852,faz parte de uma triologia autobiográfica. O episódio narrado ocorreu quando o seu autor tinha nove anos de idade.
Lê-lo faz-me evocar o falecimento da minha mãe. Ao contrário de León Tolstoi,já não era uma criança, e não a vi morta. Quando cheguei a Ponta Delgada, a urna tinha sido selada. Tal facto despertou uma série de sentimentos contraditórios, tristeza, alívio e angústia. Tristeza porque perdera a última oportunidade de a ver. Alívio, pois iria encontrá-la desfigurada, não a veria como era. Angústia face a tamanha dor, ao facto de ela ter morrido longe, inesperadamente, na madrugada a seguir ao seu aniversário. Falara com ela ao telefone a dar-lhe os parabéns. No dia seguinte senti-me muito indisposta,sem perceber porquê. À tarde, estava a leccionar,quando uma funcionária interrompeu a aula pois recebera um telefonema urgente que me era destinado. Era uma amiga, disse - Vou dar-te uma notícia muito triste... A tua mãe morreu durante a noite.
Só consegui bilhete para Ponta Delgada dois dias depois.
Desgosto
No dia seguinte, à noite, já muito tarde, quis vê-la mais uma vez, e, dominando um involutário sentimento de receio, abri lentamente a porta e, na ponta dos pés, entrei na câmara fúnebre.
No meio da sala, em cima de uma mesa, estava o caixão, rodeado pelas velas meio ardidadas dos altos tocheiros de prata; nuum canto afastado, o diácono rezava os salmos, em tom tranquilo e monótono.
Detive-me no limiar da porta e olhei à minha volta, mas os olhos marejados de lágrimas e os nervos excitados nada me permitiam distinguir; tudo se confundia na minha frente: as luzes, os brocados, os veludos, os enormes tocheiros, a almofada cor-de-rosa cercada de rendas, a coroa de flores, a touca guarnecida de fitas e, depois, qualquer coisa transparente, cor de cera...
Senti-me numa cadeira e comtemplei a sua face; mas no kugar onde a deveria encontrar voltei a ver qualquer coisa pálida, transparente, amarelada...
Não acreditando que era a face da mamã, fixei o olhar mais atentamente nessa direcção, e a pouco e pouco comecei a distinguir-lhe os tralos conhecidos e delicados.
Tremi de horror qunado me convenci de que era ela; mas, por que motivo os seus olhos, fechados, se mostravam tão encovados? E a horrivel palidez? E na face, essa mancha negra sob a pela transparente? Por que motivoa expressão fria e sevea? Porque estavam os seus lábios, de delicado desenho, tão perfeitamente cerrados? Por que motivo as linhas da sua face em repouso exprimiam uma paz tão extra-terrena, que senti um arrepio percorrer-me todo o corpo quando o meu olhar se deteve a comtemplar a sua face sem vida?
Parecia que uma força oculta e invencível me atraía o olhar para essa figura inerte. Não podia afastar os olhos dos dela e a minha imaginação mostrava-me uma série de quadros cheios de vida e de felicidade. Esquecia que era Ela o corpo inerte que jazia junto de mim e para que eu olhava estupidamente, como um objecto que não tivesse qualquer relação com as minhas recordações. Imaginava-a em diferentes atitudes: viva, sorridente; depois impressionado
León Tolstoi, Infância, (Barcelos, Livraria Civilização Editora, 1973), pp.170-172.
O texto abaixo citado é uma passagem da obra Infância de Liev Nikoláievich Tolstói (1828-1910). Publicado em 1852,faz parte de uma triologia autobiográfica. O episódio narrado ocorreu quando o seu autor tinha nove anos de idade.
Lê-lo faz-me evocar o falecimento da minha mãe. Ao contrário de León Tolstoi,já não era uma criança, e não a vi morta. Quando cheguei a Ponta Delgada, a urna tinha sido selada. Tal facto despertou uma série de sentimentos contraditórios, tristeza, alívio e angústia. Tristeza porque perdera a última oportunidade de a ver. Alívio, pois iria encontrá-la desfigurada, não a veria como era. Angústia face a tamanha dor, ao facto de ela ter morrido longe, inesperadamente, na madrugada a seguir ao seu aniversário. Falara com ela ao telefone a dar-lhe os parabéns. No dia seguinte senti-me muito indisposta,sem perceber porquê. À tarde, estava a leccionar,quando uma funcionária interrompeu a aula pois recebera um telefonema urgente que me era destinado. Era uma amiga, disse - Vou dar-te uma notícia muito triste... A tua mãe morreu durante a noite.
Só consegui bilhete para Ponta Delgada dois dias depois.
Desgosto
No dia seguinte, à noite, já muito tarde, quis vê-la mais uma vez, e, dominando um involutário sentimento de receio, abri lentamente a porta e, na ponta dos pés, entrei na câmara fúnebre.
No meio da sala, em cima de uma mesa, estava o caixão, rodeado pelas velas meio ardidadas dos altos tocheiros de prata; nuum canto afastado, o diácono rezava os salmos, em tom tranquilo e monótono.
Detive-me no limiar da porta e olhei à minha volta, mas os olhos marejados de lágrimas e os nervos excitados nada me permitiam distinguir; tudo se confundia na minha frente: as luzes, os brocados, os veludos, os enormes tocheiros, a almofada cor-de-rosa cercada de rendas, a coroa de flores, a touca guarnecida de fitas e, depois, qualquer coisa transparente, cor de cera...
Senti-me numa cadeira e comtemplei a sua face; mas no kugar onde a deveria encontrar voltei a ver qualquer coisa pálida, transparente, amarelada...
Não acreditando que era a face da mamã, fixei o olhar mais atentamente nessa direcção, e a pouco e pouco comecei a distinguir-lhe os tralos conhecidos e delicados.
Tremi de horror qunado me convenci de que era ela; mas, por que motivo os seus olhos, fechados, se mostravam tão encovados? E a horrivel palidez? E na face, essa mancha negra sob a pela transparente? Por que motivoa expressão fria e sevea? Porque estavam os seus lábios, de delicado desenho, tão perfeitamente cerrados? Por que motivo as linhas da sua face em repouso exprimiam uma paz tão extra-terrena, que senti um arrepio percorrer-me todo o corpo quando o meu olhar se deteve a comtemplar a sua face sem vida?
Parecia que uma força oculta e invencível me atraía o olhar para essa figura inerte. Não podia afastar os olhos dos dela e a minha imaginação mostrava-me uma série de quadros cheios de vida e de felicidade. Esquecia que era Ela o corpo inerte que jazia junto de mim e para que eu olhava estupidamente, como um objecto que não tivesse qualquer relação com as minhas recordações. Imaginava-a em diferentes atitudes: viva, sorridente; depois impressionado
León Tolstoi, Infância, (Barcelos, Livraria Civilização Editora, 1973), pp.170-172.
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