Um ensaio de Sophia de Mello Breyner Andresen

Do extraordinário conjunto de vinte ensaios de Sophia de Mello Breyner Andresen, intitulado O Nu na Antiguidade Clássica, transcrevo um dos ensaios que me despertaram maior interesse:

O NU FEMININO

Durante o período arcaico o nu feminino é raríssimo. Aparece excepcionalmente numa estatueta ou na pintura dos vasos onde por vezes está à beira do caricatural.

No entanto é na arte pré-histórica das Cíclades. na arte cicládica que aparecem os primeiros nus femininos onde o corpo da mulher não é entendido como um molho de sacos fecundos mas como uma forma ordenada, clara e bela.

As bailarinas cretenses usavam saias em campânula até aos pés, mas descobriam o peito exposto como dois frutos.
Porém na Grécia arcaica as Kourai estão cobertas por chitons, himations, peplos. Mas sob o plissado o nu aflora.

Assim na Ornithé do Heraion de Samos (cerca de 560 a. C.) sob o longo e fino cair das pregas ergue-se - belo, longo e fino - o corpo de jovem palmeira que Ulisses admirou em Nausica.



A túnica nem esconde nem mostra. O plissado da Ornithé não é ainda o drapejado molhado que adere às formas. Mas o cair das suas pregas é determinado, pelo ritmo, pela estrutura e pela proporçãodo corpo. É esse ritmo, essa estrutura e essa proporção que se vê.

É como ritmo. estrutura e proporção que o corpo da Ornithé do escultor Genelos se mostra. Um corpo direito e firme e claro que parece escrever a palavra «verdade». Uma recta verticalidade onde as linhas e os volumes se arredondam numa plenitude doce e concisa. Um corpo serenamente construído como a espiga cereal e que, como os Kouroi, é coluna na tocante simplicidade de um ritmo simultaneamente divino e terrestre. Um exacto equilíbrio entre fluidez e solidez na proporção justa onde os ombros direitos se arredondam suavemente, onde os seios pequenos e altos se afastam a medida de um seio, onde os braços são finos e cheios, as pernas altas, as mãos grandes.

Dentro da simplicidade hierática do esquema frontal a atitude de Genelos é em extremo atenta à realidade. Mas essa atenção não é o realismo moderno pois é a aguda fidelidade à forma natural de quem na forma natural vê a verdade.

No século V o nu feminino, tanto na pintura dos vasos como na escultura, é ainda bastante raro.

O facto de o nu feminino aparecer muito mais tarde do que o nu masculino está necessariamente ligado a ritos antiquíssimos e está evidentemente ligado aos costumes e à estrutura do «genos» e da cidade. Mas quando percorremos os museus da Grécia temos a impressão de que, para além destas razões e
ligado a estas razões, há algo mais. Dir-se-ia que é o corpo do homem que é para os Gregos a forma humana por excelência, a forma essencial, a forma das formas, a forma exemplar.

De facto é só no século IV, quando a atitude religiosa dos Gregos se modifica, que começa a ser dada uma maior importância à forma feminina. Mas esta forma aparece-nos então sempre um pouco tocada de «asianismo». Mais tarde o helenismo multiplica os nus femininos. A história do nu grego é a história do nu masculino. O nu feminino, salvo raras excepções, é helenístico e pré-helenístico.

No entanto, e em contraponto a isto, vemos que o corpo da Ornithé, sob seus leves plissados, é um corpo irmão dos Kouroi, um corpo que se ergue como forma essencial, como forma fundamental e exemplar, como forma das formas. E no rosto da Koré de Peplos, do Museu da Acrópole, brilha a mesma consciência divina do próprio eu que irradia do corpo dos Kouroi.

Mas não é possível no breve espaço deste texto desenvolver este tema e as suas contradições.

Porém não poderei deixar de referir um maravilhoso nu do séc. V, a Tocadora de Flauta do trono Ludovisi, um dos mais belos nus femininos da Grécia cujo original chegou até nós - talvez o mais belo e o mais grego.

Este baixo-relevo, encontrado em Itália, data da primeira metade do século Ve é um pouco anterior à escultura do Templo de Zeus em Olímpia. De todos os nus femininos que a humanidade pintou e esculpiu este é talvez o mais verdadeiro. Encontramos aqui o mesmo realismo sóbrio e simples que encontramos nas métopas de Olímpia. Como na métopa de Atlas, o escultor mostra como a forma de um corpo se imprime numa almofada. Também aqui não é o realismo moderno mas uma extrema fidelidade ao mundo visível, uma extrema atenção à forma, à estrutura e ao ritmo da vida. Esta fidelidade, esta confiança na verdade das coisas, no mundo moderno, só a encontramos na literatura russa, em Tolstoi e Tchekov. Talvez porque, como a Grécia, a Rússia é uma Europa oriental, uma Europa nascente, e não uma Europa declinante, ocidental.

O corpo da Tocadora de Flauta tem algo de cereal. Íntimo e suave é o seu entendimento com a luz e com a sombra. Na saliência polida do ombro, no contorno do joelho, no cruzar da perna, na flexão do braço, no perfil das costas, todas as linhas se arredondam num ritmo terrestre que invoca frutos, searas, contorno de ondas. O escultor viu e compreendeu com um acerto puro a continuidade de linhas e a plenitude unida do corpo feminino.




Ainda no trono Ludovisi, no nascimento de Aphrodite encontramos aquela forma do nu que é o drapejado molhado. A deusa emerge do mar e o abrir dos seus braços erguidos ergue e abre a distância entre os seus seios afastados. E sobre o seu corpo as pregas da túnica escorrem como fios de água.



Sophia de Mello Breyner Andresen, "O Nu Feminino," in Sophia de Mello Breyner Andresen,O Nu na Antiguidade Clássica, (Lisboa, Portugália Editora, s/d), pp.45-47.

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