Os Sentidos (2)


Da importância dos sentidos propriceptivos - um extracto da obra de Oliver Sacks citada no primeiro post sobre os sentidos:

Expliquei-lhe que a consciência do corpo nos é dada por três coisas. A visão, os orgãos do equilíbrio ( o sistema vestibular) e a propriocepção. Era esta última que ela tinha perdido. Em circunstâncias normais, trabalham todos em conjunto. Se um falha os outros compensam-no ou substituem-no - até certo ponto.

(...)

Ainda bem que Cristina se mostrou tão forte desde o início, porque embora a inflamação desaparecesse e o líquido espinal voltasse ao normal, as lesões provocadas nas fibras proprioceptivas mantiveram-se. Não houve recuperação neurológica nem numa semana, nem num ano. Na realidade, não tem havido recuperação neurológica durante este últimos oito anos embora ela tenha uma vida (mais ou menos) normal porque se conseguiu adoptar do ponto de vista neurológico mas sobretudo moral e emocionalmente. Durante a primeira semana Cristina não fez nada. Deixou-se ficar deitada, apática, quase não comendo. Estava num estado de choque, horror e desespero completos. Que género de vida a esperava se não houvesse recuperação? Que tipo de vida, em que todos os movimentos eram feitos artificialmente? Que tipo de vida, se ela não sentia o seu próprio corpo? Depois a vida continuou e Cristina recomeçou a mover-se. A princípio não conseguia fazer nada sem olhar primeiro e parava logo que fechava os olhos. Precisava de se monitorizar através da visão, olhando com atenção para cada parte do corpo que queria mexer com uma atenção e cuidado quase dolorosos. Os movimentos, controlados e regulados conscientemente, eram a princípio desajeitados e totalmente artificiais. Mas depois - e ambos ficamos alegremente surpreendidos com o automatismo que crescia de dia para dia - começou a movimentar-se de forma mais graciosa e modelada, mais natural, embora ainda totalmente dependente do uso dos olhos. Gradualmente, de semana para semana, o feedback normal e consciente da propriocepção estava a ser substituído por um feedback da visão igualmente inconsciente e automático. Os reflexos tornaram-se cada vez mais integrados e fluentes. Mas, estava a acontecer algo ainda mais importante e fundamental: agora que o modelo corporal proprioceptivo tinha desaparecido o modelo visual que o cérebro tem do corpo, a imagem corporal, que normalmente é fraca (estando ausente, como é óbvio, nas pessoas cegas) e subsidiária do modelo corporal proprioceptivo, estava a adquirir, através de um fenómeno de compensação ou de substituição, um alcance e uma força extraordinários. A tudo isto ainda se juntava um aumento compensatório do modelo e imagem corporal vestibular. As nossas maiores esperanças e expectativas tinham sido ultrapassadas.
Quer tenha havido ou não um aumento do uso do feedback vestibular, houve com certeza um aumento do uso dos ouvidos (feedback auditivo). Esta faculdade é normalmente secundária e pouco importante para a fala. O nosso discurso mantém-se normal se ficarmos surdos devido a uma constipação,
e alguns dos surdos de nascença são capazes de adquirir um discurso virtualmente perfeito. A modulação do discurso é normalmente proprioceptiva, comandada por impulsos que provêm de todos os nossos órgãos vocais. Cristina tinha perdido esse fluxo normal, essa capacidade aferente, tinha perdido o seu tom e postura vocal proprioceptiva e por isso tinha de usar os ouvidos (o feedback auditivo). Para além destas novas e compensatórias formas de feedback, Cristina também começou a desenvolver - deliberada e conscientemente a princípio, mas depois inconsciente e automaticamente - várias formas novas de avanço sustentado (em todo este processo foi assistida por técnicos de reabilitação extremamente compreensivos e competentes). Assim, no momento da catástrofe, e durante cerca de um mês, Cristina ficou mole como uma boneca de trapos, incapaz até de se sentar. Três meses depois fiquei admirado ao encontrá-la correctamente sentada - bem de mais, parecia uma estátua ou uma bailarina em pose. Depressa percebi que a maneira dela se sentar era, de facto, uma pose, consciente automaticamente adoptada e sustida, uma espécie de postura forçada e artificial para compensar a falta de postura natural. Como a natureza tinha falhado ela adoptara o artificial, mas como este era sugerido pela natureza depressa se tornou uma "segunda natureza". O mesmo aconteceu com a voz. A princípio tinha ficado quase muda. Depois começou a projectar a voz tal como se estivesse num palco a falar para uma audiência. Era uma voz teatral porque ainda não havia uma postura vocal normal. O rosto manifestava tendência para se manter monótono e inexpressivo (embora as suas emoções continuassem a ter uma intensidade completa e normal) devido à falta de tonicidade e postura facial proprioceptiva* a não ser que ela adoptasse um exagero artificial de expressão (como os pacientes com afasia fazem ao adoptar ênfases e entoações exagerados).
Mas todos estes progressos foram apenas parciais. Tornavam-lhe a vida possível mas não normal. Cristina reaprendeu a andar, a apanhar os transportes públicos, a tratar das coisas do dia-a-dia, mas só através de uma grande autovigilância e de formas estranhas de fazer as coisas, formas que deixavam de resultar assim que se distraía. Se falasse enquanto comia, ou se se distraía, agarrava o garfo e a faca com tanta força que as pontas dos dedos e a unhas ficavam sem sangue. Se a pressão não diminuía deixava cair os talheres imediatamente. Não havia um meio termo, não havia moderação.



Oliver Sacks, "A Mulher Incorpórea", in O Homem que Confundiu a Mulher com um Chapéu, (Lisboa, Relógio D'Água, 1985), pp. 71-73

Comentários

Mensagens populares