Da Morte (23)

De um dos romances da minha biblioteca existencial:

- Continuas a pensar na morte? - perguntou Narciso.
- Penso, e penso no que foi a minha vida (...) Foi-me dada a ventura de descobrir que se pode insuflar alma à sensualidade, que é essa a origem da arte. Agora, ambas as chamas se extinguiram. (...)Chegou, portanto, a minha hora. Estou conformado e cheio de curiosidade.
- Curiosidade porquê? - perguntou Narciso.
- Talvez seja tolice da minha parte. Mas estou deveras curioso. Não é curiosidade do além, o além dá-me poucos cuidados e, para te falar abertamente, não acredito em nenhum além. A árvore seca morreu para sempre; a ave enregelada nunca mais torna à vida e o mesmo acontece ao homem quando morre. Pode ainda ser lembrado por um tempo, mas nem isso é de longa dura. Não, se estou curioso é unicamente porque continuo a crer ou a sonhar que estou a caminho da minha mãe. Espero que a morte seja uma grande ventura, tão grande como a da primeira plenitude amorosa. Não posso impedir-me de pensar que, em vez da morte com a sua foice, será a minha mãe que me levará consigo e me fará voltar ao nada e à inocência.



Hermann Hesse, Narciso e Goldmundo, (Lisboa, Guimarães Editores, 1981), pp.299-300

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