2.

2.1.

Os Espelhos de Narciso

Da análise do mito de Narciso e das suas múltiplas interpretações ressalta como primeira evidência a sua pluralidade de sentido.
Num segundo momento somos sobressaltados pela complexidade e riqueza da rede de símbolos implícitos quer no relato grego quer nas leituras e representações artísticas, literárias e psicológicas posteriores.
A narrativa primordial é portadora de símbolos de profundo significado: a água, a água-espelho, a ninfa Eco e a flor entre os mais óbvios. O mito de Narciso relacionar-se-ia também com os mistérios de Elêusis e na mitologia órfica estabelecer-se-ia uma aproximação entre Dionysos e Narciso.
Nas interpretações correntes do mito é notória a atitude moralizante na medida em que o mesmo é considerado um exemplo ilustrativo da vaidade, do egocentrismo humanos e do concomitante castigo e condenação.
A hermenêutica proposta por Freud também foi marcada pelo mesmo tipo de posicionamento moralizante. Segundo a concepção psicanalítica, Narciso representaria um tipo de comportamento perverso, neurótico em que toda a energia da líbido é investida no próprio ego; ocorrendo deste modo, uma reflexão da líbido sobre o próprio indivíduo. Numa primeira abordagem Freud identificou o narcisismo com homossexualidade, entendendo o homossexual como alguém que tomando-se como objecto de amor se busca no outro, reduzindo a etiologia do comportamento homossexual ao egocentrismo. Posteriormente, considerou o narcisismo uma etapa da sexualidade infantil — narcisismo primário — que no caso das neuroses se repercutiria negativamente, no adulto — narcisismo secundário — e positivamente no caso do sentimento religioso ou da actividade artística. No decurso dos estados neuróticos operar-se-ia uma regressão patológica da líbido à primeira experiência narcísica.
Em Totem e Tabu estabeleceu um paralelismo entre o desenvolvimento da concepção humana do mundo e o da líbido individual, correspondendo a fase narcísica à fase animista quanto ao conteúdo e quanto à dimensão temporal.
Marcuse redimensionou a tese acima referida a partir do pensamento de Freud implícito no primeiro capítulo de Mal estar en na Cultura e em o Id e o Ego e desenvolveu a concepção de unidade primordial entre o homem e o mundo. Em seu entender o conceito de narcisismo primário teria conduzido o homem à descoberta de uma relação diferente com a realidade:

O impressionante paradoxo de que o narcisismo usualmente entendido como uma retirada egoísta ante a realidade, está aqui ligado à unicidade com o universo, revela a nova profundidade da concepção: para além de todo o auto-erotismo imaturo, o narcisismo denuncia uma relação com a realidade, que poderá gerar uma ordem existencial compreensiva e global.

Assim sendo, Narciso simbolizaria a integração do homem no Todo, a reconciliação com a sua essência, a aceitação de si enquanto ser uno — corpo e alma — participante da Natureza. Todo este processo gerar-se-ia a partir da auto-contemplação, do mergulho na profundidade de si mesmo.
A interpretação de Marcuse remete-nos para outras dimensões do mito, nomeadamente para a dimensão estética e artística explícita na poesia de Valéry, nos textos de Gide, de Lavelle, Bachelard e nas diferentes representações pictóricas em que o mito é transfigurado de acordo com a sensibilidade de cada artista.
No contexto acima referido Narciso é concebido como símbolo da tentativa de auto-conhecimento, de apreensão da interioridade e superação do eu empírico, mera convergência efémera de percepções.
A tentativa de descoberta da interioridade requereria um conhecimento melhor do corpo, das suas pulsões, das suas “razões.” Narciso representaria bem a imagem de um processo de conhecimento global do ser humano
(continua...)

Comentários

Anónimo disse…
Gostei muito da publicação, texto excelente, e foi de grande ajuda para meu trabalho de sociologia !

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