3. Estudos de história da neurologia e da psiquiatria.

3.1.

As Viagens científicas de Egas Moniz (1874-1955).
Prémio Nobel de Medicina e Fisiologia 1949.


Durante o período de actividade científica de Egas Moniz, devido a causas político-sociais, económicas e culturais de vária e complexa natureza , não se promovia em Portugal a criação de teses científicas inovadoras limitando-se a incipiente comunidade científica local a reproduzir e difundir tardiamente paradigmas e métodos científicos provenientes dos tradicionais grandes centros de produção do conhecimento científico.
Os investigadores portugueses procuravam através das viagens e estágios em instituições científicas europeias, preferencialmente em França e na Alemanha, obter a informação e a formação actualizadas inacessíveis no país de origem.
Muitos deles ultrapassaram a mera assimilação e transferência de conhecimentos e tentaram criar os meios que viabilizariam a produção científica autónoma em Portugal. Egas Moniz , bem assim como antes dele os estrangeirados nos séculos XVII - XVIII, e mais próximos de Egas Moniz Magalhães de Lemos (1855-1931), Marck Athias (1875-1946), Sobral Cid (1877-1941), António Flores (1883- ) e Barahona Fernandes (1907-1992), entre muitos outros, constituem exemplos esclarecedores.
As viagens de Egas Moniz organizaram-se em torno de quatro vectores fundamentais, a saber:

1. Formação: absorção de conhecimentos e técnicas.
2. Amadurecimento: transferência e aplicação dos modelos apropriados.
3. Criação: ampliação e descoberta de novos métodos.
4. Difusão: disseminação das criações originais.

Estas coordenadas obedecem a duas sequências cronológicas, a primeira decorreu desde a formação inicial em França até à divulgação, aceitação e desenvolvimento internacionais da angiografia e a segunda que se desenvolveu mais rapidamente, processou-se entre o II Congresso Internacional de Neurologia de Londres em 1935 culminando com a atribuição do Nobel em 1949.
Paralelamente a estes objectivos utilitários coexistem outras motivações nomeadamente a fruição de vivências estéticas e o convívio social. Egas Moniz uniu a viagem de razão aos prazeres da viagem.
Após o seu doutoramento em Coimbra, a 14 de Julho de 1901, no ano seguinte, Egas Moniz decidido a especializar-se em Neurologia, disciplina embrionária em Portugal, fez estágios em Bordéus e posteriormente em Paris com os mais reputados pesquisadores franceses no domínio da Neurologia e da Psiquiatria. Em Bordéus cursou Neurologia com Pitres (1848-1928) e Psiquiatria orientado por Régis (1855-1918). As lições do último sobre as psicoses tóxicas exerceram, em Egas Moniz, uma profunda influência tendo sido determinantes na construção das suas concepções sobre as bases neurológicas do comportamento.
Daí, seguiu para Paris aprofundando os seus conhecimentos na Salpêtrière e na Pitié. Nos anos seguintes voltou a França para estagiar com os neurologistas Pierre-Marie (1853-1940), Dejerine (1849-1917) e Babinski (1857-1932). Babinski forneceu os modelos no domínio semiológico e metodológico que orientaram os projectos experimentais de Egas Moniz.
Depois desta formação intensiva, Egas Moniz manteve um constante e profícuo intercâmbio científico com a comunidade científica de Paris participando activamente nas reuniões da Sociedade Neurológica, tal é o caso da comunicação aí apresentada em 11 de Janeiro de 1912, intitulada, “Inversion du Reflexe du Radius dans un cas de Syringomyélie” . Esta atitude foi decisiva para o planeamento e prosseguimento dos seus projectos de investigação, de que constitui exemplo o conhecimento directo das experiências de Sicard (1873-1929) factor que foi determinante para a concepção e desenvolvimento da angiografia.
Sicard criou precisamente em 1912 um novo método, a prova mielográfica que consistia em administrar injecções de liopidol, substância opaca aos raios X e identificar e localizar tumores da espinal-medula, facilitando a intervenção cirúrgica. Procurava-se alargar as potencialidades deste método de diagnóstico a outros orgãos.
Egas Moniz, começou imediatamente a utilizar o novo método e a desenvolver novas aplicações para o mesmo. Vejam-se, entre outros referentes à mesma problemática, os artigos “Trois Cas de Compression Médulaire dont Deux Ont Été Opérés avec Succès” ,“Compressões Intra-Raquídias e a Prova Lipiodolada de Sicard” e “Neoplasias da Medula Cervical.Tratamento Eficaz em dois Casos pela Radioterapia” .
Egas Moniz realçou as vantagens da utilização do método de Sicard afirmando que a visibilidade da coluna vertebral possibilitou a detecção precisa de um grande número de lesões que não teriam sido diagnosticadas sem o recurso a este exame. Em conversas com Sicard e os seus colaboradores conjecturava na possibilidade de criação de um método similar que permitisse a observação e o diagnóstico de lesões cerebrais.
A partir destes diálogos e de estudos teóricos e empíricos iniciou todo o processo experimental que o iria levar conjuntamente com o seu colaborador mais próximo Pedro Almeida Lima (1903-1985) e o contributo decisivo de uma equipa multidisciplinar à criação de um novo método de diagnóstico.
Em 28 de Junho de 1927 e após um acidentado percurso experimental, dados os poucos recursos materiais disponíveis, em que orientou a realização de experiências em cadáveres, em cães e finalmente no ser humano vivo obteve a primeira arteriografia bem sucedida. Imediatamente considerou ser necessário assegurar a sua primazia na descoberta e publicitá-la internacionalmente. Nesse sentido, programou uma comunicação na Sociedade de Neurologia de Paris, para a qual preparou cuidadosamente toda a documentação, compilou os factos resultantes da experimentação e partiu para Paris com o intuito de divulgar junto da comunidade de neurologistas parisienses, entre os quais se contavam os seus antigos mestres, a sua recente descoberta. Assim, após ter revelado em privado primeiramente a Babinski e a Souques (1860-1944) e posteriormente a Sicard o seu segredo, incentivado por estes fez a 7 de Julho, uma primeira comunicação na Sociedade de Neurologia de Paris seguida de uma semelhante na Academia de Medicina de Paris a 12 do mesmo mês .
As referidas apresentações grangearam-lhe grande sucesso e reputação como cientista inovador. Pode dizer-se que a partir deste momento Egas Moniz começa a afirmar-se como um cientista do centro embora trabalhando num país periférico. Posteriormente Egas Moniz ampliou e aperfeiçoou as suas técnicas, analisando as indicações, contra-indicações do seu método e aplicando-o a outras áreas da circulação cerebral.
Na qualidade de investigador de renome mundial é convidado em Agosto de 1928 por Alysio de Castro para proferir palestras versando questões neurológicas nas Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e de São Paulo bem assim como na Academia Nacional de Medicina entre outras instituições, tendo recebido o diploma de sócio honorário da Sociedade Brasileira de Neurologia, Psiquiatria e Medicina Legal do Rio de Janeiro e da Sociedade de Medicina e Cirurgia de São Paulo.
Entre 1930 e 1935 viveu uma fase de grande actividade científica que se reflecte na participação em vários eventos científicos nomeadamente na Reunião Neurológica de Paris de 3 de Julho de1930. Em Setembro do mesmo ano foi solicitado pela Association Neuropsiquiatrica Espanhola para realizar uma conferência em Saragoça . No ano seguinte, publicou em Paris a obra Diagnostic des Tumeures Cérébrales et Épreuve de l’Encéphalographie Atérielle , prefaciada por Babinski e no final do mesmo ano foi ao Congresso Neurológico Internacional de Berna . Já em 1932, apresentou uma comunicação na Academia de Medicina de Paris na sessão de 12 de Abril . Deslocou-se também a Santiago de Compostela no mês de Abril de 1933 onde conferenciou na universidade desta cidade. Ainda nesse mesmo ano publicou em Paris um segundo livro sobre as novas contribuições no âmbito da angiografia.
Egas Moniz promoveu igualmente a deslocação dos seus colaboradores mais próximos aos grandes centros de investigação com um duplo objectivo, proporcionar-lhes formação actualizada por um lado, e por outro difundir as suas próprias teorias e resultados dos seus projectos experimentais mediante o intercâmbio dos seus colaboradores com os coordenadores desses centros.
No entanto, o período de 1935-1936 revelou-se fundamental para a consolidação da carreira de Egas Moniz e apresentou grandes afinidades com o de 1927-1928. No ano de 1935 em Agosto participou no II Congresso Internacional de Neurologia de Londres, de 9-14 de Setembro na Semana Médica Internacional de Montreaux de e nos dias 26 e 27 de Maio de 1936 na Reunião Neurológica Internacional de Paris.
De todos estes acontecimentos o que se pode classificar de crucial para o desenvolvimento das suas pesquisas, foi o Congresso Internacional de Neurologia de Londres. A comunicação de John Fulton (1899-1960) e Jacobsen sobre as experiências operatórias efectuadas nos lobos frontais de chimpanzés e a constatação de concomitantes alterações comportamentais, a presença de Pavlov (1849-1936), cuja teoria dos reflexos condicionados o influenciou profundamente e os encontros com O. Foerster (1873-1941) , e Walter Freeman (1895- ) foram fulcrais para a maturação das teses sobre as causas anátomo- fisiológicas do comportamento e a posterior concepção e divulgação da leucotomia. Logo no final deste ano de 1935, sob a orientação de Egas Moniz, Almeida Lima efectuou a primeira leucotomia pré-frontal.
Utilizando idêntica política de difusão internacional das suas teses à usada aquando da criação da angiografia e usufruindo de um estatuto superior, Egas Moniz começou por publicar em 1936 e novamente em França a obra Tentatives Opératoires dans le Traitment de Certaines Psychoses e a 5 de Março realizou a comunicação “Essais d’un Traitment Chirurgical de Certaines Psychoses” na Academia de Medicina de Paris. Todavia, ao contrário do que aconteceu com a angiografia que foi pacífica e rapidamente aceite pela comunidade científica internacional a leucotomia dadas as questões éticas que suscita desencadeou cepticismo, incredubilidade e aguerridas polémicas. No entanto, será praticada por numerosos neurocirurgiões de diferentes nacionalidades cabendo ao americano Walter Freeman a responsabilidade pela rápida disseminação da psicocirurgia tendo inclusivamente modificado o processo operatório substituindo a leucotomia por um tipo de operação mais invasor designado por lobotomia.
Investigador com trabalho mundialmente reconhecido, em Junho de 1937 viajou para Itália convidado para ministrar um curso sobre angiografia e leucotomia pré-frontal em Raccogini convite que se alargou a Ferrara e a Trieste. A 3 de Setembro de 1945 foi-lhe atribuído o prémio de Oslo pela descoberta da angiografia cerebral, dada a impossibilidade de se deslocar à Noruega recebeu o prémio em Lisboa a 13 de Fevereiro de 1946 na Legação da Noruega em Lisboa.
O elevado estatuto, entretanto alcançado por Egas Moniz, através da sua participação em acontecimentos científicos relevantes, das edições de livros em França e na Alemanha e da publicação de artigos originais em revistas científicas francesas, alemãs, espanholas, belgas, suíças, italianas, inglesas e americanas de grande prestígio internacional, desencadeou outra modalidade de intercâmbio científico originando a deslocação dos cientistas do centro e a promoção de encontros científicos numa periferia, Lisboa, tornada um efémero centro.
São testemunho desta breve viragem o Congresso de Neurocirurgia realizado de 6 a 13 de Abril de 1947, promovido pela Society of Brtish Neurological Surgeons, o Congresso Internacional de Psicocirurgia ocorrido de 3 a 7 de Agosto de 1948 e o V Congresso Internacional de Neurologia a 19 de Março de 1953, tendo todos estes encontros decorrido em Lisboa e contado com a presença de neurologistas célebres. Do Congresso de 1948 saiu a proposta para candidatura ao Nobel em Medicina e Fisiologia e que lhe foi concedido em 1949.
Egas Moniz não se limitou assim a colher e assimilar as informações oriundas dos grandes centros de produção científica mas foi original na forma como se apropriou desses conhecimentos os aplicou, ampliou, criou nova terminologia e incentivou os seus colaboradores a forjarem novas técnicas. Promoveu as práticas experimentais de investigação bem assim como a articulação entre a actividade clínica e a pesquisa científica à semelhança do que acontecia desde o século XIX em França e na Alemanha.
MHRoque

(Comunicação apresentada na 2ª Conferência do STEP realizada em Lisboa na Fundação Calouste Gulbenkian em 21 de Setembro de 2000)

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