História da Neurologia

O Impacto da Fotografia e da Radiologia na Medicina na Segunda Metade do Século XIX e na Primeira Metade do Século XX

No final do século XIX e nas primeiras décadas do século XX, a visão detinha um estatuto privilegiado, entendida como faculdade de observar, verificar e certificar, sendo por isso considerada o sentido com maior poder cognoscitivo. Os programas de investigação clínica da época revelavam um grande fascínio pelas múltiplas potencialidades do visível, tornadas acessíveis através das técnicas recém descobertas da fotografia e da radiologia.
A partir de meados do século XIX, Claude Bernard (1813-1878) à semelhança de Marie-François Bichat (1771-1802), Louis Pasteur (1822-1895) e Rudolf Virchow (1821-1895), procurou construir uma ciência fisiológica que constituísse a base de uma patologia científica e fundamentasse a terapêutica racional. Para Canguilhem, “Claude Bernard formulou, no campo médico consequência da sua convicção (de inspiração comteana) sobre a identidade entre saúde e doença, ... a exigência profunda de uma época que acreditava na omnipotência de uma técnica baseada na ciência.” Deste modo, transformou a ideia de saúde num conceito normativo. Assim, o “estado normal ou fisiológico deixa de ser apenas uma disposição detectável e explicável como um facto, para ser a manifestação da relação com algum valor.” Quando os princípios fisiológicos se impuseram à clínica, tornou-se indispensável ampliar as possibilidades do olhar médico. A tecnologia veio trazer uma contribuição definitiva: além de concorrer para um aprofundamento desse olhar, ela objectivou-o. Os outrora imprecisos sinais semiológicos foram substituídos por registos objetivos, em geral quantitativos. De acordo com Michel Foucault (1926-1984), foi no século XIX que a prática médica quotidiana se integrou no laboratório como lugar de um discurso que obedecia às mesmas normas experimentais da física, da química ou da biologia.
A medicina dos séculos XIX e XX é dominada no dizer de Michel Foucault, “pelo olho absoluto do saber” que reduziu as manifestações fisiológicas do humano a esquemas, à representação geométrica de linhas, superfícies e volumes. O olhar objectivante e examinador decompõe analiticamente, controla e invade tudo, é o olhar do sujeito racional que vê os outros enquanto meros objectos de observação. Deu-se uma sobrevalorização do olhar na constituição dos saberes em medicina. Neste aspecto, o papel do microscópio, foi decisivo no fim do século XIX, pois permitiu o desenvolvimento da anatomia patológica e acelerou a biologização da medicina. A partir daí, abriu-se a linguagem a um novo domínio, o de uma correlação perpétua e objectivamente fundada entre o visível e o enunciável. Por outro lado, a orientação positivista da medicina do século XIX conduziu à convicção de que a compreensão do psiquismo e as pesquisas sobre as relações entre carácter e fisionomia, poderiam ser devidamente comprovadas, mediante o recurso a experiências verificáveis do ponto de vista científico.


A irrupção da fotografia em 1839 foi acolhida com entusiasmo pelos cientistas em geral e objecto de aplicação na biologia e na medicina de que são casos exemplares a microfotografia, os registos fotográficos das experiências de faradização efectuadas por Guillaume Duchenne de Boulogne (1806-1875) e a utilização da cronofotografia pelo fisiologista Étienne Jules Marey (1830-1904).
A microfotografia foi criada, em 1840, por Alfred Donné (1801-1878), especialista em microscopia e atento às novas técnicas. Preocupado com a descrição e a comunicação didáctica das observações ao microscópio (como transmitir a todos aquilo que é observado apenas por um?), conseguiu fixar uma câmara escura à extremidade de uma ocular do microscópio. Assim, obteve daguerreótipos de objectos microscópicos invisíveis a olho nu. Deste modo, tornou-se possível partilhar a observação das preparações microscópicas, pois a transmissão objectiva do fenómeno observado permitiu uma leitura colectiva dos microfenómenos. As imagens assim obtidas eram consideradas uma garantia de objectividade e neutralidade, pois não dependiam da capacidade de observação e habilidade para o desenho do observador.
Alfred Donné aperfeiçou conjuntamente com Jean-Bernard Léon Foucault (1868-1919) os dispositivos de difusão desta técnica. Defendeu que a fotografia constituía a alma absoluta das ciências da observação, promovendo-a contra os adeptos do desenho naturalista. Refutava argumentos do tipo o desenho sublinha o elemento significativo, mostra o que convém ver, ou o desenho abole o acaso com afirmações como: a fotografia regista, oferece ao olhar, ou a fotografia acolhe o acaso.
A microfotografia representou um avanço considerável para o desenvolvimento da histologia. Ramon y Cajal (1852-1934) também foi um histologista entusiasta da fotografia, embora tivesse enaltecido as funções do desenho na investigação científica. Ramon y Cajal, que foi impedido pelo pai de se tornar pintor profissional, perpetuou a tradição da ilustração, preferindo o desenho à fotografia. Desenhava os neurónios observados a partir das preparações das células impregnadas com cromato de prata, segundo o método de Golgi (1843-1923) aperfeiçoado por ele, processo que possibilitou a visualização das células nervosas. Ramon y Cajal passaria noites observando preparações ao microscópio, reproduzindo-as de imediato. O histologista espanhol reunia uma acurada aptidão estética de observação e representação das formas naturais com a capacidade analítica de explicação da sua estrutura e função.


Recomendava aos seus alunos a frequência de aulas de pintura com o objectivo de aperfeiçoarem a técnica de representação das suas observações, argumentando que o acto de ilustrar reforça a atenção e o rigor da observação sistemática. O cientista da natureza deveria ser capaz de apreender as estruturas e reproduzi-las com facilidade. Realçou as vantagens da ilustração visual, defendendo ser essencial ilustrar todos os estudos morfológicos com figuras copiadas minuciosamente, pois defendia que, por muito exacta e pormenorizada que fosse a descrição verbal, esta seria sempre inferior em clareza a uma boa ilustração; a representação gráfica do objecto observado garantiria a exactidão da própria observação. Declarou concordar inteiramente com Georges Cuvier (1769-1832) quando este afirmou que sem a arte do desenho, a história natural e a anatomia teriam sido impossíveis. No prólogo da sua obra Textura del Sistema Nervoso-Hombre y de los Vertebrados, revelou claramente o profundo valor gnosiológico que atribuía às imagens. Segundo Cajal, num livro anatómico as gravuras são mais esclarecedoras do que o texto. Enquanto aquelas representariam o factor objectivo, ou seja a natureza, o texto seria subjectivo, representando o autor, cuja inteligência, por fatalismos da organização cerebral, tenderia constantemente a deformar e simplificar a realidade exterior. O bom desenho como a boa preparação microscópica seriam pedaços da realidade, documentos científicos que conservariam indefinidamente o seu valor e cuja revisão seria sempre proveitosa, independentemente das interpretações que pudessem originar.
A obra iconográfica de Duchenne de Boulogne constituiu um ponto de encontro entre a electricidade, a fisiologia e a fotografia. Foi um pioneiro na utilização da fotografia enquanto novo método de observação, de representação e conhecimento no domínio clínico. Duchenne desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento da medicina e da fotografia. Construiu uma iconografia médica ao serviço da investigação científica. A originalidade de Duchenne residiu, a partir de 1852, na utilização da nova técnica da fotografia para fixar as suas experiências científicas, não descurando a sua dimensão artística e pedagógica.

A fotografia permitiu-lhe ilustrar as suas experiências de faradização localizada: usava uma corrente alterna e electrizava os principais músculos da face para redefinir as suas combinações na expressão da fisionomia. Criou uma ortografia das emoções em que cada músculo corresponderia a uma emoção ou paixão e estabeleceu uma taxonomia: a atenção, a reflexão, a agressão. O modelo mais fotografado por Duchenne era um paciente afectado por uma anestesia facial, o que fazia dele o sujeito ideal para as investigações, na medida em que a estimulação dos electródos não lhe causava dor ou desconforto. Estes trabalhos influenciaram a obra de Darwin sobre as emoções.
As pesquisas efectuadas por Duchenne na sua anatomia do vivo revelaram-se frutíferas. São disso exemplos a explicação da origem de certas disfunções musculares, nomeadamente, a descrição da distrofia muscular pseudo-hipertrófica designada por miopatia de Duchenne e, pela primeira vez, a individualização de cada um dos músculos da face e a sua contribuição para a expressão do rosto. A fotografia permitiu-lhe verificar, tornar visível e dar a conhecer as suas buscas através da publicação.
As experiências de faradização foram efectuadas na Salpêtrière, no serviço de Charcot (1825-1893) que reconheceu nele um precursor. A influência de Duchenne de Boulogne estimulou o interesse de Charcot no domínio da clínica fotográfica e levou-o a estabelecer na Salpêtrière, em 1878, o primeiro serviço fotográfico institucional. Nesse sentido, adaptou os trabalhos de Étienne-Jules Marey 1830-1904) foi médico, cirurgião, fisiólogo e inventor. Procurou analisar o movimento, registar por meio de curvas e de gráficos os movimentos do corpo que a visão não consegue captar e fixar. Um dos resultados das suas pesquisas foi a criação, em 1883, de um instrumento de registo o aparelho cronofotográfico.

Com o seu projecto Marey pretendia organizar o visível, geometrizar e fixar as aparências fugazes do vivo. Esta nova técnica permitiria substituir a subjectividade do olhar pela objectividade dos dispositivos técnicos.
A cronofotografia teve uma imediata aplicação na medicina, em 1882, quando Charcot encarregou Albert Londe (1858-1917) de fixar as diferentes fases das crises de epilepsia e de histeria dos doentes da Salpêtrière, com o objectivo de descrevê-las e compará-las e, deste modo, formular as leis da doença. Mas, nem a fotografia nem a cronofotografia o ajudaram a resolver o enigma, até porque basearam as suas pesquisas em pressupostos insuficientes. Os resultados dos dez anos (1880-1890) passados neste hospital a fotografar as crises dos doentes não foram positivos. As imagens acumulavam-se sem fornecer novos dados para a compreensão da origem anatómica e cura das referidas doenças. Devido à situação de impasse das investigações, Albert Londe foi aconselhado pelo próprio Charcot a dedicar-se a actividades artísticas. A fascinação de Charcot pelas imagens no final do século XIX, está ligada ao princípio posivista que defende a subordinação aos factos observáveis.

A fotografia clínica foi adoptada em outras áreas da medicina. É célebre o trabalho de Alfred Hardy (1811-1893) e do seu aluno A. de Montméja, cujos resultados receberam a designação de Clínica Fotográfica do Hospital Saint-Louis e foram publicados em 14 fascículos, entre 1867 e 1868. Tem uma colecção de 50 fotografias das doenças dermatológicas, de excelente qualidade. Mais próximas da realidade que os desenhos e gravuras, e bastante menos dispendiosas, as fotografias impuseram-se como um ideal de comunicação e ensino da dermatologia. Montméja estava particularmente interessado na nova técnica da fotografia pelo prolongamento da visão humana que ela representava.
Todavia, de acordo com a perspectiva de Jean-Charles Sournia, não houve na história da medicina, qualquer outra descoberta que tenha conhecido uma aceitação tão consensual e uma divulgação tão rápida como a dos raios X:
Em poucos meses, a Europa médica é informada. A partir de 1896, Armand Imbert (1851-1922) publica em Montpellier um livro sobre a técnica da radiografia e em 1897 Antoine Béclère (1856-1939) inicia em Paris um curso de radiologia clínica. A “roentologia” impõe-se ao mundo com muito mais facilidade do que a bacterologia. Os hospitais, por exemplo, munem-se de aparelhos de raios muito mais rapidamente do que de laboratórios dotados de microscópios e reagentes químicos.

A física médica mudou dramaticamente desde 1895. Durante os primeiros 70 anos, após a descoberta dos raios X por Roentgen, as mudanças técnicas foram mais lentas. Desde a primeira experiência de Roentgen com a radiação para produzir uma imagem radiográfica, foram efectuadas muitas pesquisas relativas ao design e manufactura de écrans, processadores de filmes e produtos químicos utilizados na radiologia.

Na sua forma original, os raios X forneceram novas perspectivas do interior do corpo humano, que permitiram construir uma imagem da topografia interna do mesmo, mas apenas quanto a alguns aspectos, dependendo da relativa opacidade das componentes dos orgãos internos. Os ossos eram facilmente observáveis, no entanto, as veias e artérias escapavam à visualização. O procedimento consistia em injectar substâncias opacas aos raios X para produzir o necessário contraste e obter as imagens dos orgãos pretendidos. Jean Sicard (1872-1929), obtivera em 1920, por este processo — a prova mielográfica, através da administração de injecções de liopidol — a possibilidade de identificar e localizar tumores da espinal-medula, facilitando a intervenção cirúrgica. Procurava-se alargar as potencialidades deste método de diagnóstico a outros orgãos.
O neuropsiquiatra vienense Arthur Schüller (1874-1958) terá sido o primeiro a estudar sistematicamente através dos raios X as mudanças do crânio provocadas por doenças intracranianas. No entanto, segundo muitos autores, Harvey Cushing (1869-1939) terá sido o primeiro a usar os raios X no diagnóstico neurológico. Ao tempo da publicação de Roentgen, Cushing trabalhava no Hospital Geral de Massachusetts e teria ficado entusiasmado com as possibilidades de diagnóstico dos raios X.

Cushing usou, pela primeira vez em 1896, os raios X para localizar uma bala alojada na sexta vértebra cervical de uma paciente e proceder mais seguramente à neurocirurgia. Contrariamente à atitude de contenção de Cushing relativamente às potencialidades da utilização dos raios X, a operação despertou grande interesse pelo uso dos raios X e, consequentemente, pela especialidade de radiologia. As inovações técnicas depressa conduziram a novas descobertas e a aperfeiçoamentos técnicos relativamente ao contraste, nitidez e tempo de exposição.
Persistiam, contudo, grandes dificuldades na aplicação das técnicas radiológicas à observação do cérebro, pois este devido à sua constituição mantinha-se invisível. Deste modo, o contributo dos raios X para o neurodiagnóstico parecia limitado.
Walter Dandy (1886-1946) neurocirurgião americano estudou com Harvey Cushing na Universidade de Johns Hopkins. Criou a ventriculografia em 1918, método que permitia o diagnóstico e a localização de tumores no cérebro e nos tecidos intracranianos. Dandy também inventou novos instrumentos e procedimentos cirúrgicos para o tratamento da hidrocefalia, neuralgias e outros distúrbios dos nervos cranianos. No entanto, a técnica de Dandy não foi imediatamente adoptada na Europa, e, mesmo nos Estados Unidos. Cushing, apesar do seu entusiasmo inicial pela radiologia, mostrou-se relutante quanto à utilização da ventriculografia e da pneumoencefalografia. Justificava a sua atitude conservadora invocando os riscos que a aplicação das referidas técnicas comportavam para a segurança dos doentes. Alguns observadores atribuíram tal relutância à querela entre Cushing e Dandy.
Em 1924-1925, conhecia-se os trabalhos de Jean Sicard e Jacques Forestier (1890-?) com o lipiodol. Evarts Graham e Warren Cole demonstraram que através da injecção intravenosa de tetraiodofenolftaleína era possível obter a concentração da substância de contraste no interior da vesícula biliar.
Todos estes programas de investigação eram do conhecimento de Egas Moniz e serviram de ponto de partida para a estruturação e desenvolvimento da sua investigação no âmbito da angiografia.


Nota: Adaptado do I capítulo da minha tese de mestrado Positivismo e Visibilidade na Obra de Egas Moniz (1874-1955).

Algumas páginas interessantes a propósito do tema:

http://www.cajal.csis.es/legadoca/foto/.htm
http://www.nobel.se/medicine/articles/cajal/index.htm#1, 15-09-2001.
http://www.r.legat.com7photohistory/index.html, 15-09-2001.
http://www.etudes.photographie.com/noteslect/ndl0607.html, 15-09-2001.
http://www.sfp.photographie.com/portfolio/Port06/portfolio6.html, 15-09-2001.
http://www.chez.com/sfhd/clinique.htm, 15-09-2001.
http://cajal.unizar.epfoto/img/menulat.map, 20-09-2001.

Comentários

Mensagens populares